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Opinião | O universo paralelo

Importante é todos se unirem na luta contra a pandemia, nos planos da saúde e da economia

Por Miguel Reale Júnior

Em 30 de janeiro a OMS decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional. Em 24 de fevereiro recomendou o isolamento. Em 11 de março decretou a pandemia, declarando o seu diretor Ghebreyesus: “Reduzam o ciclo de transmissão, adotem ações para conter a disseminação”. 

Em conferência virtual de 25 de março, a OMS defendeu a tese de que a última coisa a ser adotada deveria ser a abertura de escolas. O diretor da OMS, em 26 de março, reafirmou perante os líderes mundiais na reunião do G-20, da qual participou Bolsonaro, que o único caminho para proteger a vida e a economia é parar o vírus, com restrições drásticas nas escolas e nos negócios, pedindo ao povo que fique em casa.

A OMS não deixou de atentar para a questão social em face do isolamento, sensível à situação terrível dos países em sua economia. Mas alertava ter-se de focar primeiro em parar a doença e salvar vidas. Esse trecho da prioridade à saúde, mencionado pelo diretor da OMS, foi, contudo, distorcido pelo nosso presidente, a pretexto de dizer que a OMS seguia Bolsonaro. A OMS respondeu realçando de novo a importância do isolamento social. 

No Brasil, já em 3 de fevereiro, pela Portaria n.º 188, o Ministério da Saúde declarou Emergência de Saúde Pública, planejando articulação com gestores estaduais e municipais. A toque de caixa, o Congresso Nacional editou a Lei n.º 13.979, de 6 de fevereiro, dispondo sobre medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. No seu artigo 3.º se determina a adoção de medidas como isolamento e quarentena, que poderão ser impostas, segundo o § 7.º do artigo 3.º, pelos gestores de saúde locais autorizados pelo Ministério da Saúde, resguardando-se serviços essenciais. A Portaria n.º 356 do Ministério da Saúde, de 11 de fevereiro, especifica poder a quarentena ser adotada por secretário da Saúde do Estado ou do município, visando a reduzir a transmissão comunitária. Em 17 de março, os ministros da Justiça e da Saúde editaram Portaria Interministerial n.º 5, acerca da compulsoriedade das medidas preventivas, cujo desrespeito sujeitava a sanções civis, administrativas e penais, podendo configurar os crimes previstos nos artigos 268 e 330 (desobediência) do Código Penal. O artigo 268 do Código Penal edita ser crime “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.

A determinação de fechamento de atividades não essenciais, como medida de prevenção no Estado de Emergência de Saúde, foi imposta por governos estaduais, desde meados de março, pelos Decretos n.º 46.970 e n.º 47.006 do Rio de Janeiro, pelos Decretos n.º 64.879 e n.º 64.881 de São Paulo, pelos Decretos n.º 40.509 e n.º 40.520 do Distrito Federal e pelos Decretos n.º 55.128 e n.º 55.154 do Rio Grande do Sul. O Supremo Tribunal Federal, por decisão do ministro Marco Aurélio (Adin n.º 6341), reconheceu a legitimidade dos Estados para legislar em matéria de saúde.

O presidente, ao promover aglomeração pública e incitar, como no discurso de 24 de março, a volta ao trabalho e a reabertura das escolas, infringiu determinações do poder público que impedem a propagação de doença contagiosa grave, chamada de gripinha. Conforme publicou o site G1 (g1.globo.com?politica/noticia/2020/03/25/sociedade-braseira-distanciamento social), dezenas de entidades médicas e científicas apoiaram as medidas preventivas, em crítica ao presidente.

No domingo passado, o presidente, indo ao comércio de Brasília, reuniu no seu entorno várias pessoas, defendendo a volta à normalidade. Produziu a Secretaria de Comunicação vídeo insuflando ao trabalho, em boa hora vedado pelo Judiciário. Assim, houve flagrante afronta às determinações do poder público, mormente ao incentivar, como presidente, a população a desrespeitar as ordens de isolamento social, “destinadas a impedir a propagação de doença contagiosa”.

Na noite de terça-feira, o presidente fez um recuo tímido, falando em união com governadores e prefeitos, mas sem defender o isolamento social. Essa incursão na racionalidade, todavia, durou pouco. Na quarta cedo, atacou o isolamento e governadores ao difundir vídeo de falso desabastecimento, dizendo-se: “A culpa disso aqui é dos governadores porque o presidente da República está brigando incessantemente para que haja uma paralisação responsável”. Na manhã de quinta postou vídeo de mãe defendendo a volta às aulas e fim do isolamento, invenção da imprensa e dos governadores.

Assim, as condutas de incentivo ao desrespeito às determinações dos órgãos da saúde podem constituir infração penal e crime de responsabilidade, consistente este em falta de decoro ao descumprir as leis, pôr em risco a incolumidade pública e colocar interesses pessoais acima do interesse público.

Mas o importante agora é todos se unirem na luta contra a pandemia, nos planos da saúde e da economia, sem o diversionismo do embate político, deixando o presidente falando o que bem deseja, no seu universo paralelo.

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA