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Opinião|Os grilhões da desconfiança

Nossa democracia tem ainda um caminho a percorrer até que os cidadãos confiem na boa-fé dos argumentos de seus interlocutores.

O cientista político Adam Przeworski define democracia de uma maneira singela. “Democracia é um sistema no qual ocupantes do governo podem perder eleições. E, quando isso acontece, eles simplesmente vão embora para casa”, escreveu o professor da Universidade de Nova York em Crises da Democracia (Zahar, 2020). Essa capacidade de formular conceitos de maneira tão clara e precisa, mas, ao mesmo tempo, suscitar a reflexão sobre suas nuances é atributo de grandes intelectuais como Przeworski, polonês há muito radicado nos Estados Unidos.

Subjaz nessa perspicaz definição de democracia uma condição indispensável para a vigência plena e duradoura do regime: a confiança. Tanto entre os cidadãos como entre estes e as instituições.

Para que a democracia se sustente, é fundamental que um político derrotado numa eleição confie que haverá um novo ciclo eleitoral e que, se assim desejar, terá plenas condições de se apresentar mais uma vez ao escrutínio público. Implica dizer, também, que os políticos devem confiar na higidez do processo eleitoral, salvo evidências cabais de fraude. Caso contrário, aos governantes de turno não restaria alternativa a não ser lançar mão de instrumentos – legais ou ilegais, pouco importa – para se aferrar ao poder e trair o mandato que receberam dos eleitores para ser exercido por tempo determinado. Seria o fim da democracia.

Vejamos um exemplo concreto de vigor democrático. Confirmada a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, no dia 8 de novembro de 2016, o discurso mais importante não foi o do candidato eleito na noite da vitória, mas sim o do então incumbente, Barack Obama, na manhã seguinte. “O caminho que este país vem seguindo”, disse Obama no Rose Garden da Casa Branca, “nunca foi uma linha reta. Fazemos nossos zigue-zagues e, às vezes, alguns americanos pensam que estamos indo para a frente, enquanto outros acreditam que caminhamos para trás. Mas não há problema. A questão fundamental é que todos avançamos quando presumimos a boa-fé de nossos concidadãos, porque sem boa-fé não há uma democracia vibrante e funcional”. Quatro anos depois, no que pode ser considerado o maior ataque à democracia norte-americana da história recente, Trump não teve a mesma honradez e espírito público de seu antecessor.

Na esfera privada, viver sob o jugo da desconfiança exaure a energia vital de qualquer indivíduo. Relações interpessoais são abaladas. O desenvolvimento profissional fica aquém das potencialidades. Não há paz de espírito nem tampouco liberdade de ação. Na esfera pública, a desconfiança de tudo e de todos que não comungam das mesmas ideias e valores é igualmente nociva, pois interdita o debate público, que, para gerar benefícios para a coletividade, precisa ser travado, necessariamente, em termos racionais.

Decerto a democracia brasileira é uma democracia “funcional”. Afinal, há eleições regulares no País, realizadas no tempo determinado pela Constituição. Ainda de acordo com a Lei Maior, a soberania nacional é exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, por meio de um sistema eleitoral que é rigorosamente seguro, ao contrário do que apregoa o presidente Jair Bolsonaro em sua desabalada campanha para desinformar a população sobre a segurança das urnas eletrônicas.

Estamos longe, no entanto, de experimentarmos uma democracia “vibrante”. Em primeiro lugar, porque, se assim ela fosse, deveríamos ver assegurado o pleno exercício da cidadania para todos os brasileiros, independentemente de origem, etnia, gênero, afiliação religiosa ou ideológica. Porém, grupos minoritários – ou mesmo majoritários, como é o caso das mulheres – ainda são tratados como se fossem compostos por cidadãos de segunda classe em determinadas situações. Além disso, a democracia brasileira ainda tem um caminho de amadurecimento a percorrer até que os cidadãos passem a confiar, a priori, na boa-fé dos argumentos de seus interlocutores. Sem isso, seguiremos prisioneiros de nossos impasses.

O Brasil precisa urgentemente de uma liderança capaz de inspirar confiança em todos os cidadãos, e não só naqueles que já lhe nutrem simpatia. A força do exemplo dado por um líder desse gabarito será capaz de ao menos levar grande parte dos brasileiros a refletir sobre a causa-raiz de nosso atraso, que penso ser este clima de desconfiança permanente.

Porém, nem Bolsonaro nem o ex-presidente Lula, hoje os mais bem colocados nas pesquisas de intenção de voto para a Presidência da República, têm condições de liderar com legitimidade este processo de resgate da confiança entre os brasileiros e entre estes e as instituições do País. Cada um a seu modo, Bolsonaro e Lula fortaleceram suas posições políticas semeando a desavença e a desconfiança entre os cidadãos, reduzindo-os a membros de facções rivais.

Desafortunadamente, mantidas as condições atuais, é provável que um dos dois vença a disputa presidencial de outubro. Caso isso se confirme, restará a muitos brasileiros apenas confiar que, cedo ou tarde, a treva há de ser dissipada.

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JORNALISTA