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Opinião|Os novos parâmetros nacionais para a qualidade da educação infantil

Um documento construído coletivamente e que pode ser aprimorado nos próximos anos é um caminho possível e valioso, capaz de contribuir para avanços concretos

Por Patricia Mota Guedes

O ano de 2024 poderá ser lembrado por marcos históricos em prol da garantia de direitos de bebês e crianças pequenas do País. O Conselho Nacional de Educação (CNE) acaba de aprovar os novos Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil, uma proposta encaminhada pelo Ministério da Educação (MEC), com diretrizes operacionais. Além dessa conquista, podemos destacar outros avanços, como a implementação dos dispositivos do Marco Legal da Primeira Infância e a formação de um Comitê Intersetorial da Política Nacional Integrada para a Primeira Infância, e ainda o novo desenho do próximo Plano Nacional de Educação (PNE), que inclui não só acesso, mas também qualidade e equidade nos objetivos para a educação infantil.

Entre janeiro e fevereiro, o MEC promoveu um processo de consulta pública sobre a proposta do documento que estabelece padrões de referência para orientar o sistema educacional em relação à organização e ao funcionamento das instituições de educação infantil. A consulta envolveu redes e organizações, escolas, universidades, fundações, grupos de pesquisa, fóruns, entidades e demais instituições interessadas em contribuir para o documento que descreve as condições e o padrão de qualidade que o serviço público deve oferecer nas creches e pré-escolas.

A intenção foi mapear convergências, percepções e críticas para o aprimoramento do documento que será regulamentado pelo CNE. Ao todo, foram enviadas 2.230 recomendações, com mais de 28 mil participantes de 27 Estados e 1.717 instituições. O MEC também promoveu uma reunião técnica para tratar da atualização do documento e a expectativa é de que com a proposta, debatida e idealizada democraticamente, gestores e educadores possam tomar boas decisões, implementar e avaliar projetos e políticas públicas com mais exatidão e com maior interação entre municípios, Estados e governo federal.

O que há de novo nesta iniciativa? Já tivemos documentos anteriores com parâmetros de qualidade para a educação infantil, mais especificamente, em 2006 e em 2018. Mas esta é a primeira vez que se apresenta uma proposta com caráter normativo. E isso muda tudo. Significa ir além de questões teóricas – sem dúvida, relevantes – ou trazer dimensões e critérios como recomendações gerais, algo meramente opcional. Serão parâmetros que devem valer para todas as creches e pré-escolas do Brasil, incluindo as conveniadas, que, especialmente nos grandes centros, têm sido um caminho para ampliar com urgência o acesso às famílias e comunidades que mais precisam.

Considerando o desafio de se traduzir leis para as práticas das redes de ensino e das equipes, os novos parâmetros trazem também concretude para quem trabalha na e com a educação infantil. O documento está organizado em cinco dimensões: gestão da educação infantil, identidade e formação profissional, Projeto Político-Pedagógico (PPP), avaliação da educação infantil, infraestrutura, edificações e materiais. São todas igualmente importantes, e vale destacar alguns exemplos que podem concretizar avanços.

Começando pelo campo do PPP, o documento que foi para consulta pública já apontava que as práticas precisam reconhecer não apenas a identidade de cada bebê e cada criança pequena, mas das famílias, professoras, outros profissionais, e da unidade de educação nos vários contextos em que se situam. Dessa forma, considera, por exemplo, que a construção da proposta pedagógica de cada instituição seja liderada pela sua equipe gestora, mas conte com ampla participação da comunidade escolar, garantindo o alinhamento ao contexto sócio-histórico, ambiental e cultural de cada território.

Igualmente sinalizada está a importância de atividades que valorizem a diversidade, sem discriminação de gênero, raça/cor, etnia, opção religiosa, de indivíduos com necessidades educacionais especiais ou diante de composições familiares diversas e estilos de vida variados. Nesse sentido, é oportuno o documento explicitar o atendimento a todas as crianças como a garantia de um direito, apontando a necessidade de que o PPP reconheça e valorize saberes e práticas dos povos do campo, quilombolas, das águas e das florestas, além de referenciar espaços, materiais e estratégias específicos para a educação inclusiva.

Não há como pensar em um cenário de qualidade e equidade sem investimento em outra dimensão central do documento: a formação continuada dos profissionais da educação infantil. Trata-se de acompanhar e desenvolver as práticas cotidianas, garantindo a conexão entre o cuidar e o educar, proporcionando experiências lúdicas, compatíveis com sua idade e suas vivências. Envolve também a atenção para a qualidade das interações com bebês e crianças como sujeitos integrais que são, com seus afetos, seus corpos, seus interesses e suas histórias.

Igualmente estratégica é a inclusão de uma dimensão específica para a gestão da educação infantil, reforçando a responsabilidade das Secretarias de Educação no que diz respeito à garantia do acesso e permanência, de sua relação com creches e pré-escolas – incluindo por exemplo o acompanhamento pedagógico – e a própria relação da educação infantil com o ensino fundamental. Seguindo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, o documento reconhece a importância de estratégias de apoio na transição para o primeiro ano do fundamental, mas com o devido cuidado de não se tentar antecipar a alfabetização, de não privar as crianças pequenas do brincar, do conjunto mais amplo de experiências e interações que essa fase do desenvolvimento humano exige.

A trajetória da educação infantil no Brasil tem sido marcada por muitos passos. Olhando especificamente para a evolução dos parâmetros, a primeira versão do documento lançada em 2006 apresentou referências de qualidade com concepções de infância, orientando também sobre a infraestrutura adequada para as instituições. Em 2017, o MEC abriu um processo de atualização e novos parâmetros foram publicados em 2018, dessa vez alinhados com a BNCC e explicitando os papéis dos gestores de secretarias e de todos os profissionais das creches e pré-escolas.

Em 2019, com a mudança no governo federal, os parâmetros foram revistos e, em dezembro de 2020, uma versão atualizada foi encaminhada ao CNE para ser regulamentada, mas sem sucesso. Agora, a versão aprovada consolida o reconhecimento das diferentes infâncias e suas identidades.

Aprender com essa história e retomá-la é a responsabilidade que enfrentamos como país. Um documento que alcance consenso nacional absoluto e seja perfeito é seguramente algo distante da realidade. No entanto, a aprovação de um documento construído coletivamente e que pode ser aprimorado ao longo dos próximos anos é um caminho possível e valioso, capaz de contribuir para avanços concretos no compromisso com uma educação infantil de qualidade com equidade.

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SUPERINTENDENTE DO ITAÚ SOCIAL, MESTRE EM POLÍTICAS PÚBLICAS PELA UNIVERSIDADE DE PRINCETON, NOS ESTADOS UNIDOS, E EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PELA UNIVERSIDADE DE MASSACHUSETTS AMHERST, É GRADUADA EM CIÊNCIAS POLÍTICAS PELA UNIVERSIDADE DO ARIZONA DO NORTE

Opinião por Patricia Mota Guedes

Superintendente do Itaú Social, mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, e em Administração Pública pela Universidade de Massachusetts Amherst, é graduada em Ciências Políticas pela Universidade do Arizona do Norte