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Opinião | ‘Os planos de saúde estão mortos. Vivam os planos!’

A hecatombe era anunciada e se soma a uma agência frágil, burocrática e cartorial, que não se propõe a apoiar as mudanças sistêmicas do setor

Por Thiago Lavras Trapé

Não, este artigo não é uma ode aos planos de saúde. A frase faz alusão ao símbolo de manutenção da monarquia, exaltando a instituição e suas regras, mesmo diante da hecatombe (O rei está morto, vida longa ao rei!).

Os planos de saúde são responsáveis por 26% da população brasileira. Ter ou não ter plano de saúde não é uma questão apenas pragmática, é identitária. A cultura dos planos é antiga, do início do século passado, e era uma conquista de grupos específicos de trabalhadores. Ter acesso à saúde por meio de uma carteirinha que abria as portas de múltiplos serviços é uma percepção de valor incrustada na cultura nacional. É suprapartidário.

Os empregadores usam os planos como atrativo para manter os profissionais, enquanto os sindicatos sempre o tiveram como demanda coletiva principal nas negociações. Os múltiplos governos dos variados espectros ideológicos que ocuparam o poder sempre atuaram para edificá-los, assim como políticos e milhares de servidores de estatais os têm, pagos com o erário. O modelo tributário induz o seu uso e não existe horizonte que altere esse reinado. Mas há que dizer: o rei está nu!

Hoje é fácil de pautar e debater a crise, pois os péssimos resultados econômicos dos planos de saúde – que são o motor de uma cadeia produtiva extensa – fazem com que esta seja a pauta em jornais, redes sociais e congressos. Porém o cenário não é novo: o rei está nu há muito tempo.

Durante a pandemia, vimos o setor de saúde suplementar ganhar mais clientes. A percepção social de que o Estado brasileiro não é capaz de cuidar das pessoas, diante do histórico subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), persiste. Notamos, ao mesmo tempo, que os planos não têm capacidade de pensar e agir sistemicamente, gerindo essa cadeia com foco em melhores desfechos. Suas ações são fragmentadas, como reflexo da sua arquitetura.

O quadro de executivos do setor, que circula horizontalmente de companhia em companhia, é despreparado para pensar sistemicamente. Atuam sob a égide daqueles que os contratam, em busca de resultados financeiros rápidos (o famoso para ontem), que conectam as operadoras a processos pouco atentos à sustentabilidade. Teoricamente, o setor ampara a busca de soluções no modelo americano (o mais lucrativo, mas com piores resultados para seus pacientes). Os debates estão abarrotados de palavras em inglês, comuns das multinacionais, que tentam – mais do que resolver as pendências – vender influência, consultorias e cursos.

O setor – emprestando um termo que escutei de um executivo do setor – é um grande rouba monte, referência ao jogo que consiste em aumentar sua quantidade de cartas utilizando-se das cartas do adversário. Nesta tensa disputa entre operadoras e prestadores, a desconfiança é mútua, intermediada por contratos em grande parte bem construídos juridicamente, mas sem lógica para o propósito central, que é garantir acesso e cuidados aos pacientes com as melhores evidências e custos disponíveis.

Nesta disformidade, os altos custos gerados pela ineficiência são empurrados para as fontes pagadoras, empresas que contratam 70% de todos os planos, com reajustes anuais bizarros, ou abrem-se rodadas de investimento prometendo resultados inalcançáveis. E, nessa tensão, a corda estoura para o profissional e o paciente, sempre.

Vemos, dia após dia, casos e mais casos de restrição de acesso culminando no uso intenso do SUS por clientes que têm planos privados, consultas cada vez mais rápidas, pacientes pingando de especialista em especialista sem nenhuma coordenação, médicos priorizando atendimentos de pagamento direto e tornando escassas as vagas dos planos, assim como hospitais gerando intervenções desnecessárias para ampliar receita.

O sistema sofre, também, com a ausência de programas estruturados de gestão de pacientes crônicos, com parcas linhas de cuidado, que ajudariam a organizar o itinerário de grupos específicos, que demandam bastante dos serviços; com sistemas de informação fragmentados; baixíssima inovação incorporada; raros planos com modelo de acesso por atenção primária; ínfimos investimentos em prevenção. É um modelo que premia a rapidez, o volume e a intervenção, em detrimento da qualidade, com abordagens clínicas assertivas. Isso sem entrarmos no mérito dos muitos casos de corrupção.

Em suma, a hecatombe já era anunciada. Soma-se a tudo isso uma agência reguladora – a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – frágil, burocrática e cartorial, que não se propõe a fazer os devidos enfrentamentos e apoiar as mudanças sistêmicas do setor.

As crises podem catalisar grandes mudanças e inovações. Alterar a estrutura vigente significa remodelar as regras do jogo, alterar os vencedores, e o Brasil, sabemos, é pouco afeito a grandes mobilidades de poder. A solucionática dificilmente surgirá das mesmas cabeças e interesses daqueles que causaram a problemática. A crise apenas escancara esse contrassenso. Quanto às mudanças, apertem os cintos, pois o rei continuará vivo, e nu.

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DOUTOR EM PLANEJAMENTO E GESTÃO EM SAÚDE, DOCENTE NA ÁREA DE SISTEMAS DE SAÚDE, PESQUISA, INOVAÇÃO E GESTÃO NA FACULDADE SÃO LEOPOLDO MANDIC, É COORDENADOR DE PROJETOS DE IMPACTO PELO INSTITUTO DE PESQUISA E APOIO AO DESENVOLVIMENTO SOCIAL (IPADS)

Opinião por Thiago Lavras Trapé