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Opinião | Os presos e os direitos humanos

Os presos ‘cautelares’ presumem-se inocentes, e como tal devem ser tratados, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral

Por Alexandre Langaro

A Constituição federal e o Direito Internacional dos Direitos Humanos – notadamente as Regras de Nelson Mandela (Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos) – revelam o direito que assiste ao preso (a qualquer preso) de ser tratado com absoluta humanidade e incondicional respeito à sua dignidade.

No Estado Democrático de Direito, fundado nos valores da cidadania e da dignidade da pessoa humana, o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade.

Os presos “cautelares” presumem-se inocentes, e como tal devem ser tratados, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. Isso significa, no que diz respeito ao alojamento, por exemplo, que as celas e ou os locais destinados ao descanso noturno não devem ser ocupados por mais de um recluso. Se, por razões especiais, tais como excesso temporário de população prisional, for necessário que a administração prisional central adote exceções a essa regra, deve-se evitar que dois reclusos sejam alojados numa mesma cela ou local. Os locais destinados aos reclusos, especialmente os dormitórios, devem satisfazer rigorosamente as exigências de higiene e saúde, consideradas as condições climatéricas e, especialmente, a cubicagem de ar disponível, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação.

A administração deve fornecer a cada recluso, a horas determinadas, alimentação de qualidade, de valor nutritivo adequado à saúde e à robustez física, bem preparada e servida. E todos os reclusos devem ter a possibilidade de se prover com água potável – sempre que necessário.

Todos esses preceitos são de observância e aplicação obrigatória pelo Estado, a quem incumbe o dever, imposto por todas as leis da República e pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, de executar, materialmente, essa normativa. Isso sob pena de violação dos direitos humanos – e acrescente-se que apenas o Estado viola direitos humanos; a pessoa natural comete infração penal.

Nada justifica que o Estado possa impor ao preso tratamento afrontoso a essas regras mínimas. Se o fizer, perde toda a sua legitimidade – legitimidade vista aqui, sociologicamente, como autoridade natural. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, a CIDH, já decidiu mais de uma vez, presente contencioso jus-humanista, que a execução penal no Brasil é uma tortura.

O encarcerado conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade. Assim, o preso não poderá sair a hora que quiser para tomar um sorvete, à noite; isso não implica, todavia, que ele possa ser alojado num local inadequado para o ser humano, tampouco que fique privado de alimentar-se adequadamente, de beber água potável, de tomar banho quente, de dormir condignamente – em cela separada. Isso é “pedir muito”? Não! É o cumprimento, rigoroso, pelo Estado das regras por ele sancionadas, homenageando e realizando os direitos humanos (direitos humanos que foram pioneiramente escritos no capítulo 25, versículos 1 a 3, do livro de Deuteronômio, há quase 4 mil anos).

O que se pretende, no limite, é tão somente a aplicação das leis da República aos presos – uma resposta estatal corretíssima, exemplar, pedagógica e profilática.

Quando se apura, se processa e se pune, visa-se, como sempre se diz, à aplicação – normalmente adjetivada de “rigorosa”, “exemplar” – das leis. Essa via, entretanto, tem mão dupla: este rigor exemplar tem de valer também contra o Estado, incidindo, no ponto, o postulado da superioridade ética estatal (Raul Eugênio Zaffaroni).

Ao operador jurídico incumbe o dever de trabalhar para diminuir o gap abissal existente entre o ser (o mundo concreto da vida, a vida vivida) e o dever ser (o mundo abstrato, normativo, a vida pensada). Isso tem de ser feito mediante o uso de todos os mecanismos jurídicos disponíveis, obviando, assim, ameaça ou lesão a direito.

A suposta – e inadmissível – impossibilidade do cumprimento das regras punitivas pelo Estado é conducente à imposição de “medidas cautelares diversas da prisão”. Nos casos de crimes graves, cometidos com alta agressividade – “periculosidade” – contra a pessoa, havendo necessidade comprovada de encarceramento, poder-se-á fazer o acionamento da “remição especial”, conforme tenho articulado em livros, artigos e cursos. Analogicamente, por inafastável imposição sistemática – e o sistema do ordenamento jurídico é uma ordem, e não um caos –, invoca-se o que foi assentado pelo Supremo Tribunal Federal (Tema 423): “Cumprimento de pena em regime menos gravoso ante a falta de vagas em estabelecimento penitenciário adequado”.

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ADVOGADO, ESTUDOU O NY CRIMINAL PROCEDURE LAW EM NOVA YORK, É PROFESSOR DA ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL DO RIO GRANDE DO SUL

Opinião por Alexandre Langaro