Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião | Paixões políticas e a democracia no Brasil

Cabe perguntar como deve autuar o ‘campo progressista’ para deslocar o centro de gravidade da vida política para um ponto melhor de equilíbrio

Por Sergio Fausto

A ação política precisa mobilizar sentimentos para ser efetiva. Estatísticas e argumentos racionais bem construídos têm poder limitado no convencimento do eleitor.

Essa constatação nos coloca diante de um desafio. Como reconquistar apoio sólido à política democrática sem apelar de modo irresponsável a sentimentos muitas vezes cristalizados em paixões e preconceitos nem esquecer que a razão é indispensável para bem governar e assim responder às aspirações, desejos e inseguranças das pessoas? Sem uma resposta pronta para essas perguntas, faço aqui apenas um primeiro exercício para entender o percurso das paixões políticas nos últimos 30 anos.

Entre 1994 e 2014, os partidos que protagonizaram a consolidação da democracia no Brasil souberam despertar esperança. O PSDB o fez em tom menor, sem paixões, pelo próprio estilo de suas lideranças. Foi um partido de quadros tecnicamente qualificados. Com o Real, criou a esperança de um país mais estável e moderno. O PT despertou esperança em tom maior por ser um partido de massas, com origem popular, e pela trajetória extraordinária de vida de sua principal liderança. Em torno da figura de Lula da Silva se criou um relato épico de superação de injustiças sociais seculares.

As esperanças suscitadas pelos dois partidos se sustentaram por um bom tempo e se concretizaram parcialmente. Foram esperanças encadeadas (não por deliberação das lideranças). Dito de modo simples, sem o Real e a arrumação institucional que permitiu, Lula não teria obtido sucesso na Presidência. Depois de 20 anos, a esperança se exauriu, em parte por erros, que não devem ser varridos para debaixo do tapete, em parte pela própria dinâmica das expectativas que, uma vez satisfeitas, crescem para outro patamar.

A esperança cedeu lugar ao medo. Uma nova direita soube trabalhar esse sentimento com competência. Conseguiu articular um relato abrangente das falhas e promessas não cumpridas do período anterior, dar-lhe um caráter moral, identificar um inimigo a abater e definir uma estratégia de combate. Problemas reais, como a insegurança pública, a ineficiência do Estado, as adversidades de pequenos e médios empresários e empreendedores, a desestruturação familiar nas camadas mais pobres, passaram a ser vistos, cada vez mais, como sintomas de uma corrupção moral generalizada que não apenas servia aos interesses do “sistema”, mas também obedecia a um plano para submeter o País, as famílias e os indivíduos a ideologias exógenas e perversas. Nessa toada, o medo virou pânico e o conservadorismo se tornou reacionário e propenso ao autoritarismo.

Há indícios de que o País recobra certa normalidade. Mas ainda é cedo para saber se o conservadorismo – uma posição política e doutrinária respeitável, e importante numa sociedade aberta e democrática – conseguirá se diferenciar e se sobrepor ao reacionarismo conspiranoico que se expressa em Jair Bolsonaro, mas vai além dele.

Para quem se coloca na outra margem do rio, mas sabe que as águas da democracia precisam reencontrar um leito comum, é preciso fazer uma constatação e uma pergunta. O País dobrou à direita e não dá sinais de que pretenda dobrar de novo à esquerda no futuro previsível. Diante dessa constatação óbvia, cabe perguntar como deve autuar o “campo progressista” para defender conquistas fundamentais obtidas no momento de sua ascensão política e deslocar o centro de gravidade da vida política brasileira para um ponto melhor de equilíbrio.

Dessa perspectiva, vejo com bons olhos o debate que se esboça no interior da esquerda, ciente de que vem perdendo terreno. Tem razão o ministro Fernando Haddad ao dizer que ela precisa rever convicções que envelheceram mal e reafirmar seus valores em um projeto contemporâneo orientado por um horizonte utópico (viável, acrescentaria eu). Não é preciso ceder à mistificação do “empreendedorismo” para responder às aspirações legítimas de milhões de trabalhadores por conta própria, que querem conciliar autonomia e maior proteção.

Sem perder de vista o horizonte de longo prazo, existem desafios mais imediatos. O governo Lula ainda pode desempenhar um papel realmente importante para desinflar o bolsonarismo. Não deve levar água para o moinho do pânico moral que move as engrenagens da extrema direita. O Lulinha paz e amor do seu primeiro mandato está fazendo falta. Maior autocontenção da primeira-dama também ajudaria.

Na agenda substantiva, a mudança de posição frente à Venezuela é um passo na direção correta, ainda que tardio. Já a política em relação às estatais é uma corrida na direção errada. Mesmo os que não creem em teorias conspiratórias se perguntam se não voltará a ocorrer o que foi feito no verão passado. Os desvios da Lava Jato e a revolta moral seletiva da direita não apagaram da memória a corrupção nem extinguiram os sentimentos que ela provoca.

Meu desejo para 2026 é um país com menos medo e mais esperança e uma eleição disputada com maior civilidade e conteúdo substantivo. Será uma utopia? Se for, se trata de torná-la viável.

*

DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

Opinião por Sergio Fausto

Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP