É improvável que os 21 fundadores do pequeno matutino então intitulado A Província de São Paulo pudessem imaginar que o projeto iniciado naquele 4 de janeiro de 1875 chegaria tão longe. O jornal de maior prestígio no mundo àquela altura era o The Times, de Londres. No Brasil, os principais veículos se concentravam no Rio de Janeiro, com destaque para o Jornal do Commercio. Dos jornais de grande influência no Brasil e no mundo, nenhum havia cruzado a barreira dos cem anos, e as incertezas daquele tempo não permitiam antever um futuro tão longevo e de tantos êxitos quanto experimentaria O Estado de S. Paulo. Mas havia, sim, nas páginas daquela primeira edição, um elemento a corroborar a aposta no sucesso: o compromisso com “a imprensa livre e independente”.
Muitos veículos da época serviam como ferramenta de grupos que almejavam o poder, mas os fundadores do Estadão decidiram por outro caminho e estabeleceram um pacto com seus leitores: “Não sendo órgão de partido algum nem estando em seus intuitos advogar os interesses de qualquer deles, e por isso mesmo se colocando em posição de escapar às imposições do governo, às paixões partidárias e às seduções inerentes aos que aspiram ao poder e seus proventos, conta A Província de São Paulo fazer sua independência o apanágio de sua força”.
Enquanto grande parte dos veículos se associava a partidos e oligarquias, o Estadão fundava seu projeto editorial no jornalismo profissional e independente. Esse seria o modelo para a imprensa brasileira nas décadas seguintes, com os grandes veículos buscando equilibrar receitas de leitores e do mercado publicitário, ampliando suas audiências por meio de sucessivas ondas de inovação que levariam a atividade jornalística ao rádio, à TV e à internet.
Cento e cinquenta anos depois, num mundo em que todas as pessoas estão virtualmente conectadas e onde fluxos quase infinitos de informação circulam sem barreira, alguém poderia questionar legitimamente se os princípios fundadores do Estadão e da própria imprensa moderna continuam válidos. Se todos os eventos relevantes podem ser testemunhados em tempo real pela tela de um celular; se governantes, decisores e personalidades podem se comunicar com o público sem qualquer necessidade de mediação, para que servem, afinal, os jornais e o jornalismo?
Não são poucos os críticos e céticos a argumentar que a abundância de informação dos tempos atuais tornou o jornalismo obsoleto e desconectado das necessidades do público. Não devemos deixar de encarar esse debate, mas não podemos hesitar na defesa do que acreditamos. A imprensa hoje é mais necessária do que antes, não menos. Junto com a informação, cresceu exponencialmente também a desinformação. As mesmas plataformas que conectam pessoas e facilitam debates são usadas para manipular, confundir e deturpar. E a verdade dos fatos não pode ser alcançada por outros meios que não a boa técnica de reportagem, a investigação objetiva da realidade e a escuta de fontes primárias.
Embora relevante, a discussão epistemológica sobre o conceito de “verdade” não deve paralisar a prática jornalística. O jornalismo, como atividade pragmática, se traduz em um compromisso objetivo com a verificação dos fatos e a transparência de métodos. Enquanto a filosofia promove o necessário debate sobre os fundamentos da verdade, o jornalismo mantém sua função pública, reconhecendo suas limitações, mas mantendo o foco na missão de informar.
Foi respeitando esses princípios que este jornal revelou fatos que mudaram o curso da história recente do Brasil. Soubemos pelas páginas do Estadão que, em 2006, o caseiro Francenildo Costa relatou reuniões de lobistas com o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, numa mansão onde circulavam malas de dinheiro; que, em 2021, parlamentares engendravam o que viria a ser conhecido como “orçamento secreto” para enviar dinheiro a bases eleitorais sem qualquer tipo de controle público; que, em 2023, prepostos do ex-presidente Jair Bolsonaro tentaram entrar ilegalmente no Brasil com joias presenteadas pelo governo saudita. Ninguém jamais vai deparar casualmente com informações como essas como se fossem frutos maduros prontos para serem colhidos na ruidosa opulência das redes sociais. Todas elas tiveram de ser arrancadas das entranhas do poder, contra a vontade de indivíduos e organizações que fizeram e fariam de tudo para resguardá-las do conhecimento público.
A verdade é um direito coletivo inalienável, e o jornalismo serve para iluminar aquilo que o poder prefere manter nas sombras. Não é apenas sobre relatar os fatos, mas dar ao público instrumentos para entender a realidade e tomar decisões livres e bem-informadas.
Talvez nossos fundadores não tenham imaginado que seus esforços pudessem sobreviver a guerras, revoluções, ditaduras e transformações tecnológicas. Mas, ao firmarem com o público um pacto pela independência jornalística, criaram as condições para que o Estadão pudesse atravessar um século e meio e hoje celebrar seu passado e projetar as décadas que virão.
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É DIRETOR-PRESIDENTE DO ‘ESTADÃO’