Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião | PEC das Praias: quem realmente leu?

É importante esclarecer: ainda que a proposta seja aprovada, não será permitido qualquer tipo de limitação de acesso ou utilização das praias pela população

Por Mattheus Montenegro e Carlos Eduardo Salles

A recente audiência pública realizada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 39/11 colocou em evidência um tema que gera efeitos diretos sobre a sociedade brasileira desde o século 19. O que mais nos chama a atenção, porém, é que o debate político, refletido na mídia especializada, foi completamente deturpado em torno de uma suposta privatização das praias.

Para que se tenha um debate correto acerca do texto, é importante esclarecer que, mesmo com eventual aprovação da PEC, não será permitido qualquer tipo de limitação de acesso ou utilização das praias pela população, pois a transferência da propriedade dos terrenos de marinha, ainda que feita de forma definitiva a particulares, não conferirá a quem os receber qualquer direito exclusivo sobre as praias, que continuarão sendo bens “de uso comum do povo”.

Pouco se tem falado sobre o que realmente importa: os efeitos benéficos da PEC, que permite o fim de inúmeros litígios judiciais. Afinal, depois de quase dois séculos, particulares ainda são obrigados a pagar elevados valores a título de foro, taxa de ocupação e laudêmio à União Federal, sem critérios claramente definidos que terminam assoberbando o Poder Judiciário.

A PEC n.º 39/11 nada mais faz do que propor a extinção dos denominados “terrenos de marinha”, que, de acordo com uma norma de 1946 ainda vigente, são aqueles inseridos numa faixa imaginária que se estende por 33 metros terra adentro a partir da linha preamar de 1831 (que corresponde à média das marés altas desse ano).

A Constituição federal de 1988 prevê que esses terrenos pertencem à União Federal. Apesar disso, podem ser utilizados por particulares mediante pagamento anual de certos valores: foro ou taxa de ocupação (equivalentes a 6% e 2% sobre o valor atualizado do terreno).

Quem ocupa um “terreno de marinha” pode utilizá-lo de forma bem parecida com os donos dos demais imóveis particulares situados no litoral brasileiro. Ou seja, têm liberdade para explorá-los comercialmente e construir edificações. Os ocupantes podem também transferir, de forma gratuita ou onerosa, o direito ao domínio que exercem sobre esses bens (no caso de transferências onerosas, a União Federal fica com 5% do valor pago na operação a título de laudêmio).

Tal qual ocorre com os imóveis particulares, a utilização dos “terrenos de marinha” está sujeita às mesmas regras de licenciamento ambiental e para obras, plano diretor e zoneamento, devendo inclusive respeitar as normas de preservação de vegetação nativa quando aplicáveis.

O principal motivo de divergência judicial gira em torno dos aspectos técnicos das demarcações desses terrenos, eis que as conclusões da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) sobre a linha imaginária são fortemente criticadas por especialistas em cartografia, topografia, geodésia, etc. Segundo eles, tendo como referência a linha preamar média de 1831, os terrenos de marinha dificilmente deveriam estar para além das faixas de praia. Porém, não é isso o que ocorre na maioria dos casos.

Em razão de uma demarcação realizada na década de 1950, boa parte dos imóveis localizados em ambos os lados da Avenida das Américas, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, entre eles muitos condomínios e empreendimentos comerciais que ficam a quilômetros da Praia da Barra da Tijuca, é considerada terreno de marinha.

O mesmo ocorre com uma demarcação realizada entre 1997 e 2001, que afetou imóveis situados em várias cidades do Estado do Rio de Janeiro (Niterói, Paraty, Angra dos Reis, Maricá, Macaé, Saquarema, Araruama, Búzios, Cabo Frio, Campos, Carapebus, Mangaratiba, Quissamã, Arraial do Cabo, Rio das Ostras e São João da Barra).

Além dos aspectos técnicos da demarcação, os ocupantes também vêm discutindo a apuração dos valores cobrados. Em Salvador, por exemplo, alguns ocupantes de terrenos de marinha foram surpreendidos por aumentos de até 400% do valor regularmente pago à União Federal, resultante de uma reavaliação do valor desses imóveis a partir de 2015, que destoa do mercado.

A quantidade de ações judiciais sobre o tema denota a sua relevância, diretamente relacionada ao tamanho do impacto financeiro causado pelos terrenos de marinha a uma parcela considerável da população brasileira.

A PEC é boa para o governo, ao permitir uma arrecadação imediata que seria importante para o equilíbrio fiscal; é boa para os ocupantes desses terrenos, que estarão livres de discussões judiciais intermináveis, além de desafogar o Poder Judiciário. Mas a discussão existente hoje leva a apenas uma pergunta: quem realmente leu e entendeu o texto?

Espera-se que, com parcimônia e equilíbrio, a discussão seja feita com o que realmente importa, analisando os benefícios da medida para toda a sociedade brasileira, sempre firmes na premissa de que a PEC, diferentemente do que vem sendo dito, não permite a privatização das praias.

*

SÃO ADVOGADOS

Opinião por Mattheus Montenegro

Advogado

Carlos Eduardo Salles

Advogado