Opinião | Pesadelos e sonhos elétricos

Se a abundância de fontes renováveis no Brasil nos candidata a fornecedores internacionais de hidrogênio, não se projetou como conquistar esse prêmio

Por Paulo Ludmer

O mundo espera do Brasil um celeiro fornecedor de hidrogênio limpo para descarbonizar a atmosfera. Mas o País vive a inevitável eletrificação com desafios colossais. Nesta trajetória há oportunidades. Os sucessos e as derrotas dependem de planejamentos, da qualidade da gestão, da execução e correção da governança em políticas públicas, eficiência e eficácia, prazos e métricas de resultados, enfim, espírito público. Por ora, o que se vê são investidores atraídos por virtuais ganhos, mantendo o governo a reboque.

Tome-se o olhar do Operador Nacional do Sistema (ONS), que, a cada instante, ordena qual usina e quanto de sua energia deve ser despachada de seus geradores. Escolhe por quais linhas de transmissão e de distribuição esses kWh irão viajar. Elege cada subestação que acolherá e transformará a energia elétrica, abaixando sua voltagem (ou elevando-a), convertendo energia contínua em alternada, gerenciando reativos e capacitivos na rede. Tem de superar constrangimentos imprevisíveis, como os recentes abatimentos de torres e incêndio disruptivo no transporte da energia do Rio Madeira para Araraquara (SP), constrangimentos que pedem investimentos e custos preventivos.

O operador olha o Brasil, uma área similar à da Comunidade Europeia, com milhares e milhares de quilômetros de linhas unidas num Sistema Interligado Nacional (SIN), sem descuidar de sistemas isolados, como na Amazônia Legal. Com a geração intermitente (sol e vento) substituindo gradativamente as usinas firmes (a combustíveis fósseis, nucleares, hidrelétricas com reservatórios de acumulação), é mais desafiador manter o sistema em bom funcionamento. Há momentos com ventanias numa região, céu encoberto noutra, bacias hidrográficas retendo água e outras a vertendo, canaviais destinando bagaço para suas térmicas, laranjais e eucaliptais para as caldeiras de cogeração (privadas), produzindo simultaneamente energia elétrica e vapor. A propósito, queimadas de canaviais em locais proibidos às vezes rompem linhas de transmissão.

No contrapé estão picos de consumo, como Copa do Mundo, futebol regional, festas juninas e natalinas, feriados díspares pelo País, um caleidoscópio em que não pode falhar o fornecimento. Há milhões de habitantes em movimento nas férias de inverno e no verão que obrigam polos de turismo a suportar cargas enormes. Depois, o sistema fica ocioso.

Não se pode esquecer de que o gás natural da Bolívia escasseia até 2030 e poderá, mediante investimentos, ser trocado pelo gás do pré-sal. Enquanto isso, evolui a produção de energia elétrica de lixo, de resíduos e de lodo, entre outras. E há que negociar o fim próximo do Tratado de Itaipu com o Paraguai.

Avança para o nosso mar uma plêiade de projetos de usinas eólicas. Despontam gigantescas baterias elétricas para estabilizar sistemas como o SIN – carregam-se à noite e liberam kWh de dia.

No Brasil prolifera o prossumidor. Ele gera sua energia, compra-a quando carece ou vende sobras que surgem. Hoje são centenas; amanhã, milhares. Como operar centralizadamente o novo sistema pulverizado no mapa, manusear as redes, as subestações? Há ladrões de fios de cobre por toda parte, roubo de energia, acidentes meteorológicos tais como raios e rajadas de ventos.

A geração distribuída executada em domicílios, em áreas rurais e em empresas fica pronta e começa a operar antes que amadureçam os respectivos transportes. As caras linhas de transmissão, subtransmissão e distribuição, diante das renovadas topologias das cargas elétricas, estrangulam-se – algumas ociosas, outras saturadas – atendendo meticulosas exigências ambientais para sua implantação. Coadunar prazos de usinas prontas com as linhas que escoarão sua geração é antigo trauma do setor no Brasil. Nem vou tratar, aqui, dos cenários de mudanças climáticas.

Simultaneamente, proliferam os carros elétricos, que demandam mais geração, centenas de fornecedores, oficinas de manutenção, de bens e serviços, além de pessoas treinadas. A construção civil já antecipa pontos de carregamento nas diversas garagens. Supõem-se milhões de veículos elétricos com baterias a armazenar, carregar e recarregar, no médio prazo. Depois da mecanização, já assistimos à eletrificação do agronegócio.

Há décadas o fragmentado setor elétrico brasileiro não cumpre planejamentos integrados às vontades da Nação, não tem uma bússola suficiente. Se a abundância de fontes renováveis no Brasil nos candidata a fornecedores internacionais de hidrogênio, também não se projetou como conquistar esse prêmio.

Temos tudo para largar na frente. Por exemplo, 40 mil postos de distribuição de etanol, hoje nos tanques dos automóveis (o hidrogênio pode ser transportado dentro da amônia e do etanol). No entanto, as políticas públicas serão determinantes para as décadas seguintes. Se vacilarmos nos fundamentos econômicos, regulatórios, políticos e sociais, não faltam países candidatos para nos substituir.

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ENGENHEIRO, JORNALISTA, PROFESSOR E ESCRITOR, É AUTOR DE ‘PLACEBOS ELÉTRICOS’ (2022), ‘TOSQUIAS ELÉTRICAS’ (2021), ‘HEMORRAGIAS ELÉTRICAS’ (2015), ENTRE OUTROS. SITE: WWW.PAULOLUDMER.COM.BR

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