Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|Pix, real digital, IA e o Estado de vigilância

Mais do que um ‘like’ numa postagem, a transferência de recursos dá uma informação muito mais clara do que valorizamos

Por Christiano Sobral

De 1947 a 1991, vivíamos a guerra fria. Além da corrida armamentista, havia o auge da utilização da espionagem e o ápice da atuação da famosa KGB.

Talvez o objetivo dessa agência fosse controlar tudo e todos por todo o tempo, produzindo relatórios, informações e dados que, provavelmente, eram acumulados e disponibilizados para análise. Mas até que ponto essa vigilância era realmente possível com a tecnologia disponível naquela época? Quanto do produzido foi simplesmente ignorado e nunca sequer sistematizado?

Entretanto, o impossível de ontem é plenamente viável hoje. Com a capacidade de processamento e armazenamento atual e o uso de Inteligência Artificial (IA), não só é factível monitorar as pessoas mas também ter toda essa informação processada e disponível de forma correta.

O sonho da espionagem russa de outrora tornou-se algo que até já pode existir secretamente em diferentes nações. Ou mesmo ser ferramenta do meio privado, para manipulação de ideias e decisões em favor dos próprios interesses.

Todos os dias uma imensidão de informações é gerada e registrada a cada vez que usamos algum equipamento eletrônico conectado – como nossos smartphones – ou um meio de pagamento que se utilize da internet, direta ou indiretamente, para gerar suas transações – como os cartões de crédito e débito.

Esses dados são facilmente associados a nós, por meio de identificadores como nossos números de registro de pessoa física. O que, por meio de determinações legais, como a de informar o número em algumas transações comerciais, permite que o Estado também vincule as informações a nós.

Essa coleta, além de ser impossível de ser percebida ou detida no dia a dia, ainda é auxiliada por nossa inocência digital, quando oferecemos nossos dados gratuitamente em estabelecimentos comerciais ou em transações não legalmente exigidas.

O que não nos atentamos é que somos frágeis e fáceis de manipular, nos fazendo servir ao propósito de outros de forma involuntária. Basta ver a já documentada capacidade da Cambridge Analytica de modificar resultados de referendos e eleições presidenciais. E isso em países do chamado Primeiro Mundo. Tudo por meio de mecanismos simples e de interferência em redes sociais.

Agora imagine o poder e o risco de um país onde todos os dados dos seus cidadãos possam ser facilmente monitorados. Ocorre que é exatamente isso o que estamos desenvolvendo no Brasil.

Inovações simples e úteis, como o espetacular Pix, já possibilitam que seus passos sejam monitorados a partir dos seus hábitos de compra e consumo. Mas ele ainda não alcança a totalidade das transações, pois ainda existe a moeda física. Só que não por muito tempo, dado que vem aí o já anunciado real digital.

Por que o governo perderia tempo construindo uma ferramenta baseada em uma tecnologia, que é cara e que consome uma elevada quantidade de energia, se não fosse para ganhar algo sobre nossas informações? Pois é exatamente do que se trata essa nova moeda nacional.

Ele não é equivalente ao bitcoin, que possui na tecnologia a sua garantia de origem e validade. Mas é uma ferramenta de dados que centraliza as transações da Nação em uma única base; um caminho seguro para o amplo controle.

Mais do que um like numa postagem, a transferência de recursos dá uma informação muito mais clara do que realmente valorizamos. E, como somos resultado das nossas escolhas, revelamos a nós mesmos para o Estado quando permitimos que essa informação siga.

Com a ampla disponibilidade e total acesso e controle sobre nossos dados, vem o Estado de vigilância e torna muito mais real o temido Big Brother. É o primeiro passo para o surgimento de uma ditadura digital, talvez tão sofisticada que nunca nos apercebamos realmente dela e nunca venhamos a reagir como historicamente fizemos no passado.

É certo que queremos acreditar que exista um firewall legal que nos proteja das consequências dessa nova realidade. No caso, podemos citar dispositivos como: o Artigo 5.º da Constituição federal, que garante o direito à privacidade, proteção de dados pessoais e sigilo de correspondência, de comunicação e de dados; a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que estabelece regras para coleta, uso, armazenamento e compartilhamento de dados pessoais, bem como as obrigações e responsabilidades das empresas e organizações que tratam esses dados; o Código de Defesa do Consumidor, que também protege a privacidade dos consumidores, especialmente no que diz respeito ao uso indevido de informações pessoais por parte de empresas; a Lei de Acesso à Informação, que garante o direito dos cidadãos de ter acesso às informações públicas e protege o sigilo de informações que possam comprometer a privacidade de terceiros.

Porém, é ingênuo imaginar que a mera existência da lei, por mais forte e ampla que seja, poderá evitar que nossos dados sejam usados como mecanismo de controle pelo Estado. Elas não evitam que você seja manipulado pelas empresas privadas, imagine por um ente ainda mais poderoso.

O pior é que pouco temos a fazer em relação ao que o futuro nos reserva. Máquinas cada vez mais potentes e dados cada vez mais disponíveis possibilitarão um mundo novo em que privacidade será ficção e livre-arbítrio, uma ilusão individual de cada um de nós.

*

ADVOGADO, ADMINISTRADOR, LAW MASTER EM DIREITO DIGITAL, MESTRE EM ESTRATÉGIA, PROGRAMADOR, É SÓCIO-DIRETOR DO URBANO VITALINO ADVOGADOS

Opinião por Christiano Sobral