Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião | Pontos cegos no debate sobre os cartões

A quase totalidade da responsabilidade pela inadimplência é do quadro institucional do sistema, e não dos tomadores ou da conjuntura

Por Roberto Luis Troster

O Brasil tem um dos sistemas financeiros mais sofisticados do mundo em tecnologia e um dos piores institucionalmente. Atualmente, tem 71,7 milhões de cidadãos negativados. Como nem todos os inadimplentes são negativados, o problema é maior ainda.

Representantes de instituições financeiras, do governo e do comércio procuram uma proposta de autorregulação que reduza as taxas do rotativo do cartão e, consequentemente, a inadimplência. Têm prazo até a virada do ano para apresentar um plano para tanto, que deverá ser aprovado pelo Conselho Monetário Nacional. Se não for apresentado até lá, entrará em vigor uma limitação do total de juros que podem ser cobrados.

Há três razões mais apontadas para a inadimplência. Uma é a redução da renda familiar. Há casos em que acidentes de percurso, como doenças e desemprego, diminuem a renda familiar, mas na média o emprego e a renda estão aumentando, portanto a inadimplência deveria estar diminuindo, e não subindo, como está. As variações da renda não explicam o volume atual de inadimplentes, superior a um em cada três cidadãos.

Outra justificativa é que o parcelamento sem juros causa prejuízos e isso faz com que as taxas do rotativo sejam elevadas para compensar. É uma afirmação de que pagadores solventes pagam pelos insolventes, ou seja, de que a diferenciação na precificação do crédito pelo risco, se existe, é mínima.

O parcelamento sem juros é financiado pelo comércio, que, se quiser antecipar os recebíveis, paga juros. Para as instituições, é um crédito diferido pelo qual recebem tarifas e floats financeiros. Há analistas que afirmam que a modalidade à vista tem menos inadimplência. É um equívoco: por definição, é zero, porque quando atrasa um dia deixa de ser à vista e automaticamente vira crédito rotativo.

A terceira justificativa é a falta de educação financeira. Duas observações: uma é que o sistema é desnecessariamente complicado, faz com que uma mesma taxa tenha seis ou mais valores diferentes – taxas com ano de 365 dias e com ano de 252 dias; taxa mês e taxa ano; sem e com IOF (que pode variar até quatro vezes de valor, dependendo do dia do mês). Exige conhecimentos que poucos dominam.

A segunda observação é que uma pessoa, mesmo com o melhor conhecimento de finanças possível, não conseguiria evitar a inadimplência causada pelo monopólio de coação. Para ilustrar o conceito, utilizarei um exemplo numérico da Caixa Econômica Federal, com valores divulgados pelo Banco Central na primeira semana de outubro. Destaco que não é o único banco que opera assim e que nem todos os bancos operam assim.

Num financiamento para aquisição de veículos, a taxa foi de 24,7%, um valor na mediana do mercado. É uma operação com alienação fiduciária, ou seja, a Caixa pode retomar o veículo extrajudicialmente, se houver mora em uma das parcelas. Todavia, se o devedor atrasar um dia, o sistema automaticamente paga a parcela com o cheque especial e a taxa sobe para 143,8% (mais IOF). É uma taxa quase seis vezes maior.

A qualidade do crédito é exatamente a mesma, todavia, como o devedor não tem escolha, tem de pagar. É um monopólio de coação. Não é livre mercado, é abuso de poder de mercado. Para a Caixa, o risco continua o mesmo; depois de um tempo, se a inadimplência continuar, executa a garantia e recupera os recursos do financiamento. São milhares de veículos e imóveis.

No caso do rotativo do cartão, é a mesma lógica, e a taxa cobrada pela Caixa naquela semana foi de 276,6% (mais IOF). Está abaixo da média, que é superior a 400% ao ano. Para o tomador, que teve dificuldades temporárias de pagamento, se conseguir pagar, bom. Se não, cai na armadilha da dívida.

Pagando ou não, sua saúde financeira fica fragilizada, com impactos adversos em todas as outras dívidas que tiver. Ou seja, na margem, fragiliza a saúde financeira de todo o sistema. Quando muitas instituições precificam o rotativo dessa forma, a qualidade de crédito do sistema se deteriora e todos perdem, a intermediação financeira e o País.

O ponto deste artigo é de que a inadimplência é alta porque o crédito é mal concedido. Acontece porque há uma ausência de regras de precificação, a classificação de riscos é precária e as informações aos tomadores são desnecessariamente confusas. A quase totalidade da responsabilidade é do quadro institucional do sistema, e não dos tomadores ou da conjuntura.

O que fazer? Três medidas podem fazer muita diferença. A primeira é eliminar o entulho inflacionário – leia-se múltiplas indexações, tributação do crédito, moeda remunerada, gestão da liquidez sistêmica, tabelamentos e horizontes curtos. Outra é mais transparência. A terceira é exigir regras de precificação de acordo com o risco e ajustar a regulamentação dos birôs de crédito.

Há mais que pode ser feito, mas o proposto pode fazer muita diferença. Mantém o livre mercado e, se adotado, melhorará a qualidade de crédito e até aumentará a rentabilidade das instituições financeiras. Dever bem é bom, ajuda a economia e a cidadania. O problema é dever mal. É isso.

*

É ECONOMISTA. E-MAIL: ROBERTOTROSTER@UOL.COM.BR

Opinião por Roberto Luis Troster