A vida política brasileira cinge-se hoje à discussão distante da realidade, circunscrita a elucubrações e tratativas acerca de coligações nas eleições presidenciais e seus reflexos na composição de chapas estaduais.
Antecipa-se a eleição com atenção às pesquisas eleitorais, cujos índices são dados como definitivos, quando estes números apenas refletem o recall dos candidatos e podem, quando muito, revelar o grau de rejeição.
Com este panorama reduzido às possibilidades de acordos com vistas à eleição, tem-se a impressão de que o Brasil “vai indo” e seu destino não apresenta perigos, pois tudo é superado pelas artimanhas dos conchavos, pela satisfação das ambições daqueles que se intitulam membros da classe política dirigente, mas cuja bússola é voltada apenas para os seus interesses pessoais.
A tomografia de nosso país indica, contudo, a absoluta ausência de governo, sem qualquer planejamento estratégico a mostrar quais medidas concretas devem ser implementadas para resolver seus diversos desafios.
O País vive farsas promovidas pelo presidente da República e sua turma, a começar pela auto-outorga do mérito indigenista, quando é acusado da prática de crime contra a humanidade em face das populações indígenas durante a pandemia, com denúncia no Tribunal Penal Internacional.
Somos condenados a viver um processo esquizofrênico, com a convivência concomitante de duas realidades conflitantes: o mundo do “faz de conta”, vivenciado pelas lideranças políticas, preocupadas com os conluios e cálculos eleitorais, e principalmente por Bolsonaro, com sua central de fake news, a se fantasiar de super herói em motociatas e passeios de jet-ski.
Só que há um Brasil real, a denunciar a inconsistência desse mundo fantasioso das ambições pessoais. O Brasil composto pelos problemas efetivos: inflação; miséria e fome; desemprego elevado; crescimento pífio do PIB e redução da renda per capita; deterioração de nosso parque industrial e do meio ambiente; crise sanitária; vulnerabilidades em nosso comércio exterior; além da continuidade da corrupção.
Não há governo e também não há a atuação dos organismos de controle, fundamentais no autocrático sistema presidencialista, pois é essencial a atuação fiscalizadora e repressora da Câmara dos Deputados e da Procuradoria-Geral da República. Essas, por interesse político, renunciam à tarefa de processar as condutas ilegais promovidas pelo chefe do Executivo e seus sequazes.
Diante desta ausência de governo e de fiscalização, quem ocupa o espaço de efetivação do Orçamento, espinha dorsal do exercício do poder?
As emendas parlamentares já constituíam moeda de troca em outros governos. Todavia, até tinham valor igual para todos os parlamentares, a destinação era conhecida e sua pertinência, examinada pelo Executivo.
Na gestão de Arthur Lira criou-se, todavia, o maior instrumento de corrupção, o “orçamentão do Centrão”, por via do qual se institucionalizou a emenda do relator, cujo valor alcançou R$ 21 bilhões em 2021. Por essa emenda, o relator indica diretamente a destinação de verba aos ministérios para aplicação em obra específica em determinado município. Fica-se sem saber, posto que oculta, quem é a figura parlamentar por detrás dessa indicação feita em valores de livre fixação a municípios escolhidos a dedo, conforme a importância do interesse político.
Exemplo gritante do domínio da República pelos senhores Lira e Ciro Nogueira se colhe na denúncia do Estado de domingo retrasado sobre o poder do Centrão na destinação das verbas discricionárias do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Gere o fundo ex-chefe de gabinete do senador Ciro Nogueira, hoje ministro da Casa Civil. Em absoluta desproporção com a população estudantil, Alagoas, de Arthur Lira, recebeu a maior receita do fundo, com dotação de mais de R$ 60 milhões. O Piauí, do ministro Ciro Nogueira, recebeu R$ 20 milhões, pouco menos que São Paulo, cuja população estudantil é infinitamente maior. Essas dotações aos municípios são intermediadas por pastores, que negociam com prefeitos a transferência direta aos seus municípios. Um escárnio.
Dentre os aspectos do Brasil real está a absoluta vulnerabilidade do País no campo do comércio exterior, objeto de artigo nesta página do embaixador Rubens Barbosa, seguido de exposição na Academia Paulista de Letras. O panorama é assustador, pois nossas exportações centram-se em ferro e em dois produtos agrícolas, soja e milho, com poucos compradores no mercado internacional, dependendo em grande parte da China.
A Academia Paulista de Letras, ao tomar ciência dessa situação, decidiu, como cultora de nossa soberania, fazer uma conclamação alertando para esses perigos que podem levar à bancarrota.
Assim, na ausência de lideranças efetivas, com o País em degenerescência, a Academia pede aos que se preocupam com o futuro do Brasil esforços para promover debate sobre as mudanças necessárias para enfrentar, com pensamento estratégico de médio e longo prazos, as nossas vulnerabilidades.
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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA