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Opinião | Presidiários e o capitalismo de ‘stakeholders’

Empresas que acolham mão de obra prisional podem causar grande impacto onde atuam e beneficiar também seus negócios.

Por Claudia Pitta

Você consideraria presidiários ou egressos do sistema prisional como stakeholders da sua empresa? Para a maioria das empresas, a provável resposta a essa pergunta é “não”. Por isso mesmo o assunto merece atenção.

O mapeamento de stakeholders (ou partes interessadas) é um dos pontos de partida para a construção da estratégia ESG de uma organização. Esse exercício, em geral, segue orientações internacionalmente consagradas sobre a definição do que são partes interessadas. O Fórum Econômico Mundial, por exemplo, declarou em seu manifesto de 2020 que uma empresa atende não apenas a seus acionistas, mas a todas as partes envolvidas, como colaboradores, clientes, fornecedores, comunidades locais e a sociedade em geral. O Global Reporting Initiative (GRI), por sua vez, define stakeholders como entidades ou indivíduos que podem ser afetados de forma significativa pelos serviços, produtos ou atividades das organizações, ou cujas ações possam afetar a capacidade da organização de adotar estratégias ou atingir seus objetivos, acrescentando que os públicos interessados podem incluir funcionários e outros trabalhadores, acionistas, fornecedores, grupos vulneráveis, comunidades locais, ONGs ou outras organizações da sociedade civil.

Os movimentos de diversidade e inclusão costumam elencar como grupos vulneráveis aqueles minorizados por critérios étnico-raciais, de gênero, identidade de gênero e orientação sexual, e, em alguns momentos, pessoas com deficiência. Certos grupos sociais, no entanto, não costumam figurar nas matrizes de stakeholders de nenhuma organização. Entre eles, a população carcerária e os egressos do sistema prisional. Esses indivíduos parecem estar à margem do capitalismo de stakeholders, seriam os “noholders”, no termo cunhado por Marco Penteado. Mas talvez não devesse ser assim.

O debate sobre oportunidades de emprego para esses públicos é relevante, tanto do ponto de vista social quanto econômico. Para o indivíduo que cumpre ou cumpriu pena, o trabalho desempenha um papel fundamental na ressocialização, contribuindo para devolver o senso de identidade, autoestima e produtividade. Para a sociedade em geral, essa possibilidade de ressocialização contribui para a contenção da criminalidade – questão da maior relevância não apenas para cidadãos, como para empresas, sobretudo aquelas que operam em zonas com índices mais altos de violência.

Estudos internacionais apontam que em países como a Noruega – onde a taxa de aprisionamento é de 74 presos por 100 mil habitantes, segundo o Institute for Criminal Policy Research (ICPR), inferior à média mundial – a taxa de reincidência criminal é de 20%, bem menor que a dos Estados Unidos, que ultrapassa os 70%. O exemplo norueguês já começa nas oportunidades que os encarcerados encontram dentro da prisão, onde preparam a própria comida e têm acesso a trabalho e estudo.

No Brasil, a Lei de Execuções Penais estabelece a redução de um dia da pena para cada três dias trabalhados. O trabalho do preso pode ser interno, quando realizado nas dependências do estabelecimento prisional, ou externo, e não está sujeito ao regime da CLT, o que isenta o contratante dos encargos trabalhistas. Já o salário deve corresponder a, pelo menos, 75% do salário mínimo nacional. Na prática, o custo dessa mão de obra mostra-se até 60% mais baixo para a empresa. Para utilização da mão de obra prisional, a empresa deve firmar parceria com o ente público administrador do estabelecimento. No início de julho, o governo do Rio Grande do Sul assinou um plano de incentivo à mão de obra prisional e firmou uma parceria com uma empresa de calçados para ampliar o número de vagas para egressos do sistema prisional.

Com o objetivo de incentivar a contratação dessa população, cuja principal barreira é o preconceito, a nova Lei de Licitações autoriza que os editais para contratação de serviços exijam da contratada que um porcentual mínimo de sua mão de obra seja oriundo ou egresso do sistema prisional.

O Estado do Rio Grande do Sul tem-se destacado no fomento ao trabalho prisional, convidando empresas a unirem-se a este esforço em prol do bem comum, ao mesmo tempo que se beneficiam diretamente do custo reduzido e de eventuais ganhos reputacionais da contratação destes “noholders”.

Um dos exemplos interessantes foi implementado no presídio do município de Lajeado: a contratação de presidiárias para a produção de bioabsorventes para doação. O projeto endereça, simultaneamente, vários temas da agenda ESG: a pobreza menstrual, a produção de absorventes sustentáveis e a conscientização das detentas, que recebem educação sobre saúde e higiene menstrual.

É provável que apenas um número reduzido de empresas esteja apto a acolher a mão de obra prisional. Estas, porém, podem causar um grande impacto nas comunidades em que atuam, beneficiando também seus negócios. Portanto, é importante que as organizações enxerguem esta parcela da população como potencial stakeholder, para que possam, se houver capacidade e interesse, criar possibilidades para integrá-la no ecossistema produtivo e social.

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CONSULTORA E PROFESSORA DE ÉTICA ORGANIZACIONAL E ESG, É FUNDADORA DA EVOLURE CONSULTORIA