A Medida Provisória (MP) 2.004-6, de 10 de março de 2000, convertida na Lei n.º 9.964/2000, no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, foi o marco inicial de uma cultura postergatória de pagamentos de tributos extremamente danosa ao País. Trata-se dos Programas de Recuperação Fiscal, os conhecidos Refis.
De lá para cá, em pouco mais de 20 anos, foram instituídos mais de três dezenas de Refis visando ao refinanciamento de dívidas tributárias ou não e, consequentemente, à redução da inadimplência. Destacam-se, entre estes Refis, o da crise de 2009, que tinha por objetivo minimizar os efeitos da débâcle da crise financeira internacional que abateu os mercados em 2008/2009; e o Refis do Futebol, instituído pela Lei n.º 13.155/2015, prêmio inconteste à má gestão.
A instituição dos Programas de Recuperação Fiscal apresenta finalidades e características similares. A finalidade, geralmente, é possibilitar a regularização e a renegociação de dívidas, notadamente as tributárias, de pessoas físicas ou jurídicas com os entes federativos, promovendo o carreamento em curto prazo de recursos para os cofres públicos e a diminuição da inadimplência. À primeira vista, parece uma boa política. Não é.
Já como características temos que, geralmente, promove descontos vantajosos para pagamento à vista, contempla dívidas em diferentes estágios, é destinado a pessoas físicas e jurídicas, conta com adesão facultativa, possibilita parcelamentos em longo prazo, oferece descontos em juros de mora e multa em porcentuais elevados. Seria o Programa Litígio Zero um novo Refis? Acredito que sim. Vejamos.
No dia 12/1/2023, foi publicada a Portaria RFB/PGFN n.º 1, que “institui o Programa de Redução de Litigiosidade Fiscal (PRLF), medida excepcional de regularização fiscal por meio da realização da transação resolutiva de litígio administrativo tributário no âmbito de Delegacia da Receita Federal de Julgamento (DRJ), no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e de pequeno valor no contencioso administrativo ou inscrito em dívida ativa da União”.
Como visto, há previsão de contemplação de débitos tributários em diferentes estágios, bem como a menção de que é uma medida “excepcional”. Infelizmente, não é uma medida excepcional. Ao contrário, é uma medida corriqueira. Já tivemos mais de 30 Refis beneficiando a quase totalidade dos segmentos econômicos ou segmentos específicos (times de futebol e agro, por exemplo).
Depreende-se da leitura da portaria que o programa se destina às pessoas físicas e jurídicas (micro, pequenas e grandes empresas), estabelece condições de adesão de acordo com o montante da dívida e o porte da empresa, detalha os porcentuais de descontos de juros e multas para os que aderirem, a possibilidade de utilização de prejuízos fiscais e base de cálculo negativa para quitação do débito e a concessão do prazo de 12 meses para pagar. Não é só isso. Informa o valor mínimo da prestação de acordo com o porte do contribuinte, a necessidade de adesão ao Domicílio Tributário Eletrônico (DTE), o prazo (1.º de fevereiro e termina em 31 de março) e a forma de adesão ao programa (portal e-CAC da Receita Federal). A par dessas características, constata-se que a similitude do programa Litígio Zero com o Refis é evidente.
O art. 7 da Portaria RFB/PGFN n.º 1 dispõe “que a formalização do acordo de transação constitui ato inequívoco de reconhecimento, pelo contribuinte, dos débitos transacionados e importa extinção do litígio administrativo a que se refere”. Deste artigo, salvo melhor juízo, decorre a alcunha do projeto Litígio Zero.
Uma das finalidades do programa distintas da arrecadação de recursos em curto prazo é a diminuição da quantidade de litígios existentes. Acredito que medidas excepcionais que visam a auferir recursos e diminuir números de litígios existentes são paliativas, que não se configuram como solução adequada, promovendo a concorrência desleal entre contribuintes inadimplentes e adimplentes e insegurança jurídica. Deve-se, a priori, melhorar a legislação jurídico-tributária no âmbito administrativo com a finalidade de prevenir litígios.
Sempre que a União se depara com a possibilidade de recessão ou vivencia uma conjuntura econômica adversa, como a dos dias atuais, tira da cartola a possibilidade de fazer um novo Refis. Tem sido assim nos últimos 20 anos. Está sendo assim com o Programa Litígio Zero. Alega-se que em tempos de recessão o Refis é um recurso que pode minimizar a crise econômica, possibilitando alívio financeiro para os contribuintes, preservação de empregos e aumento substancial na arrecadação de impostos, haja vista só ser homologado o parcelamento das dívidas depois de paga a primeira parcela. Não é bem assim.
Há estudos desenvolvidos pela Receita Federal que mostram o efeito nocivo destes programas na arrecadação. Os contribuintes, na expectativa de novos programas e vantagens, deixam de pagar seus tributos. O não pagamento de tributos concretiza um planejamento tributário atípico, sendo mais proveitoso para o contribuinte aplicar os recursos em títulos públicos remunerados pela Selic.
Nesta linha, temos o Estudo sobre Impactos dos Parcelamentos Especiais, efetivado pela Receita Federal do Brasil, cuja leitura eu sugiro, que informa: “Cabe frisar ainda que a concessão reiterada de parcelamentos sob condições especiais criou uma certa acomodação nos contribuintes, que não se preocupam mais em liquidar suas dívidas. Em relação às opções pelas modalidades de parcelamentos especiais, verifica-se que um grupo importante de contribuintes participou de três ou mais modalidades, o que caracteriza utilização contumaz deste tipo de parcelamento”.
“Nada é mais certo neste mundo do que a morte e os impostos.” A frase, atribuída a Benjamin Franklin (1789), não é dele, ele só ajudou a popularizá-la. A estimulação da inadimplência proporcionada pelos programas de parcelamento mitiga sobremaneira a “certeza” desse aforismo.
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AUDITOR FISCAL DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL, É VICE-PRESIDENTE DE ASSUNTOS FISCAIS DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL. E-MAIL: CRESIO@ANFIP.ORG.BR