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Opinião | Público versus privado no saneamento básico

É preciso superar preconceitos. No atual ritmo, é certo que não chegaremos à universalização só com o investimento público, mas tampouco o faremos sem ele

Por Rudinei Toneto Júnior, Amaury Patrick Gremaud e Alexandre G. de B. Figueiredo

Uma falsa dicotomia que opõe público e privado está presente no debate sobre o Marco Legal do Saneamento Básico no País. Desde a edição da Lei n.º 14.026/2020, ganhou força uma visão favorável à maior participação do setor privado na provisão daqueles serviços em razão da suposta ineficiência dos prestadores públicos e de uma também suposta incapacidade de realizar os investimentos na proporção necessária para a universalização.

Desse discurso deriva uma também falsa relação de causa e consequência: segundo esse ponto de vista, equivocado, a provisão privada seria a única forma de garantir a expansão almejada. Refém de uma concepção mais ideológica do que amparada em dados concretos, além de ignorar o grande volume de recursos públicos no setor, esse entendimento não contribui para a construção de necessárias novas soluções que articulem público e privado.

Atualmente, a prestação desses serviços no País é predominantemente pública, tanto para água como para esgotamento sanitário. Mais de 90% da população que acessa o saneamento é atendida por prestadores públicos, quer seja pelas companhias estaduais, quer seja diretamente via autarquias municipais e prestadores locais. Há também algumas empresas microrregionais que atuam em poucos municípios próximos.

Em conjunto, o grupo dos prestadores públicos foi responsável pelo investimento de R$ 324,6 bilhões no setor entre 2002 e 2021, o que corresponde a 92% do total investido em saneamento no País, conforme estudo da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe). A maior parte desses recursos vem das companhias estaduais, com 79% do total.

É fato que o volume necessário para a universalização é imenso: R$ 893,3 bilhões, conforme estimativa da KPMG/ABCON, atualizada em 2022. Mas não se pode dizer que os investimentos públicos sejam irrelevantes para o setor e tampouco que haja investimentos privados que os supram. O mais acertado seria criar condições para a necessária e importante participação privada (que ainda é pequena) sem que isso implique o sacrifício da pública.

É indicativo analisar como se dá a provisão dos serviços de saneamento em países onde a universalização é mais avançada. A análise de outras experiências é reveladora na medida em que pode ajudar a dissolver nossos preconceitos internos.

A começar pelos Estados Unidos: lá, onde os serviços públicos (ou utilities) são majoritariamente entregues à iniciativa privada, cabendo ao Estado a regulação, predomina a provisão pública de água. Conforme a United States Environmental Protection Agency, mais de 80% da população norte-americana recebe água potável de prestadores públicos e locais.

Mesmo na França, sede de grandes companhias privadas internacionais de saneamento, a provisão pública continua relevante. Lá, 39% da população recebe serviços de água e esgoto de companhias públicas, enquanto 60% é atendida pelo setor privado (o 1% restante se refere a companhias de capital misto). É digno de nota que o Estado é titular de parte relevante das ações das empresas privadas e é majoritário, por exemplo, na Suez.

Por sua vez, a Alemanha é um exemplo de predomínio da provisão pública: 60% da população é atendida pelo Estado, 20% por companhias de capital misto e os demais 20% por empresas totalmente privadas atuando mediante concessão.

Aliás, destaca-se a existência, tanto na França como na Alemanha, de um forte movimento em defesa da reestatização desses serviços, amparado tanto em queixas contra os preços como na falta de investimentos pelos atores privados. As experiências de reestatização da água em Paris e Berlim são paradigmáticas nesse sentido.

Já na Inglaterra, a totalidade dos serviços é prestada por empresas privadas. Trata-se de um modelo adotado na década de 1980, quando, sob o período Thatcher, as dez empresas públicas inglesas que realizavam a provisão de água foram privatizadas. Porém também aqui há um movimento de questionamento da qualidade dos serviços, do baixo nível dos investimentos e dos preços das tarifas.

Esse breve giro por experiências no saneamento de países com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais elevado que o brasileiro indica que não existe uma solução única para a universalização. Sobretudo, indica também que a provisão pública ou é predominante ou, ao menos, essencial na maior parte deles.

Isso não implica uma conclusão que vete a participação privada, mas, sim, indica soluções nas quais ela se desenvolva com segurança jurídica e nos marcos do interesse público, garantindo a modicidade tarifária, inclusive em parceria com a provisão estatal, quando for o caso.

A dificuldade para a universalização do saneamento no Brasil não está no caráter público ou privado da provisão, mas sim na existência de incentivos adequados, no respeito às características regionais, no envolvimento democrático, na transparência, na regulação adequada, nos novos mecanismos de financiamento e na combinação de soluções possíveis que envolvam a dimensão pública e a privada.

É preciso superar preconceitos para caminhar com mais celeridade rumo a 2033. No atual ritmo, é certo que não chegaremos à universalização apenas com o investimento público, mas tampouco o faremos sem ele.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA FEA-RP/USP E COORDENADOR DE PROJETOS DA FUNDACE; PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA FEA-RP/USP E PRESIDENTE DA FUNDACE; E PROFESSOR VISITANTE NO PROLAM-USP E PESQUISADOR DA FUNDACE

Opinião por Rudinei Toneto Júnior, Amaury Patrick Gremaud e Alexandre G. de B. Figueiredo