Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião | Quando dizer ‘era uma vez o Perse’?

Uma história que muito prometeu, mas não conseguiu passar ao largo da insegurança jurídica que constantemente abala o setor privado, com ou sem pandemia

Por Márcia Fernanda Sepúlveda Cardoso

Em maio de 2021 foi sancionada com vetos a Lei n.º 14.148, que instituiu o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), um conjunto de medidas emergenciais e temporárias adotadas pela União para compensar efeitos socioeconômicos decorrente da pandemia de covid-19. A sociedade brasileira ainda estava impactada, sob tantos aspectos, pelo que foi a devastadora chegada do coronavírus, que impôs restrições, ceifou centenas de milhares de vidas, agravou mazelas sociais e deflagrou crise em diversos setores da economia.

O Perse é resultado do Projeto de Lei n.º 5.638/2020, que tinha por objetivo implementar medidas em favor do setor econômico que o denomina, o nicho de eventos indiscutivelmente paralisado pela calamidade pública, e pretendia conceder o parcelamento de débitos federais, anular alíquotas de tributos e promover linhas de créditos. Substitutivos na tramitação pela Câmara dos Deputados abriram o interesse a outros setores ao descreverem, de forma expansiva, as atividades econômicas da promoção de eventos, incluírem hotelaria, salas de cinema e serviços turísticos, além de envolverem o exercício indireto dessas atividades.

Foi para sanção o substitutivo do Senado Federal, prevendo como benefício mais amplo e longevo a redução a zero, por 60 meses, de PIS, Cofins, Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). As demais benesses, embora relevantes como transação e indenização, estavam condicionadas a prazos menores de adesão ou de implementação. O veto presidencial à dispensa de tributos, às fontes de receitas compensatórias, à indenização estabelecida, entre outros pontos, foi derrubado pelo Congresso Nacional em março de 2023, quando então o programa ganhou a integral roupagem construída ao longo da tramitação nas casas legislativas, mais amplo que seu projeto inicial e sem as restrições pretendidas pelo governo federal.

São indiscutíveis a relevância e o impacto de ter zerada a tributação de PIS, Cofins, IRPJ e CSLL por cinco anos, para qualquer empresa, o que, na contrapartida, afeta a capacidade de arrecadação federal e, de modo geral, abre espaço para diversas abordagens, a depender da perspectiva que se olhe.

Fato é que a alíquota zero dos tributos federais permitida pelo Perse tem sido alvo de muitos debates. Da parte dos contribuintes, medidas jurídicas buscam alcançar receitas ou atividades não autorizadas pela Receita Federal, discutindo, por exemplo, o que seria o resultado da atividade da empresa, que receitas continuariam sujeitas à tributação, o que pode ser considerado exercício indireto da atividade de eventos e turismo e os requisitos para fruição, tal como o prévio cadastro no Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos (Cadastur).

Em outra linha de frente, proposições normativas foram capitaneadas pelo Fisco com o propósito de esvaziar o impacto da renúncia de arrecadação, até que culminaram na recém-editada e ainda controversa Medida Provisória (MP) n.º 1.202, de 28 de dezembro de 2023.

Normas infralegais, mas, principalmente, as alterações da Lei n.º 14.592/2023, já foram impulsionadas para abafar controvérsias jurídicas, tais como a legalidade de disposições regulamentares, a interpretação da lei, atividades e receitas abarcadas e a própria qualificação do benefício. O Poder Legislativo, que deu forma e cores à Lei do Perse, tem cedido a releituras e reajustes do seu próprio produto.

A estabilidade do Perse, quanto ao seu efeito de redutor de carga e receita tributária, sempre esteve em jogo. Inicialmente por sua amplitude e, agora, pela manutenção do tempo de existência, tal como inicialmente estabelecido.

De 2021 para cá, muita coisa aconteceu. As dores e restrições da pandemia, embora não efetivamente cicatrizadas, foram atropeladas, na velocidade da luz, pelo surgimento quase diário de notícias, anseios, dilemas e perspectivas. E, para contextualizar o tratamento que o Perse e outras relações tributárias vêm ganhando do governo federal, cabe ter em mente que a substituição do teto de gastos pelo novo arcabouço fiscal incrementou o perfil de máquina arrecadatória. Em linhas gerais, o cumprimento das metas fiscais, a possibilidade de crescimento dos gastos e, por consequência, a capacidade de investimento estão atrelados ao resultado primário, que é, basicamente, a diferença entre o que se arrecada e as despesas de um governo cuja marca social é, até aqui, inafastável.

Assim como o Perse, a chamada desoneração da folha de pagamento, o direito à compensação de créditos decorrentes de decisões judiciais, a tributação dos fundos de investimentos e offshores e alterações no Conselho Administrativo de Recursos Federais (Carf), apenas para exemplificar, compõem um conjunto de medidas afiadas para a consecução dos objetivos fiscais defendidos pelo governo.

Mas é preciso lembrar que, entre a sede de receita do governo e o desafio da iniciativa privada de não sucumbir à crise, estabilidade e planejamento são fatores de alta relevância para o sistema. A Lei do Perse, que sempre teve data certa para acabar, é uma diretriz formalmente estabelecida pelo próprio poder público, que permitiu confiar em cinco anos de redução de carga tributária e abriu espaço para estruturar estratégias de retomada e investimentos de médio e longo prazos.

Algumas questões judicializadas ainda estão pendentes de definição e as narrativas ganham números cada vez mais controversos. A pressão dos setores diretamente envolvidos encontra ressonância, ao passo que os argumentos governamentais estão se descolando das finalidades do programa, inclusive sugestivos de uso fraudulento, o que não haveria de ser razão para a precipitação do fim, sob pena de gerar uma disfunção em si mesmo.

Neste cenário, está nas mãos do Congresso Nacional o destino do período da redução da carga tributária, agora desafiado pela MP 1.202/2023. Provavelmente, será a definição de uma história que muito prometeu, mas não conseguiu passar ao largo da insegurança jurídica que constantemente abala o setor privado, com ou sem pandemia.

É ver o que guarda o próximo capítulo e saber, ao certo, na montanha russa da iniciativa privada brasileira, a partir de que momento a história será concluída com “era uma vez o Perse”.

*

ADVOGADA

Opinião por Márcia Fernanda Sepúlveda Cardoso

Advogada