Na atemporal Oração aos moços, discurso à turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Rui Barbosa referiu-se aos jovens formandos como “juízes de amanhã”, e, entre conselhos que ainda valem por todo um curso de Direito quanto de Ética, exortou: “Não tergiverseis com as vossas responsabilidades, por mais atribulações que vos imponham, e mais perigos a que vos exponham”. Se viessem a tornar-se advogados, o maior dos eruditos brasileiros lhes observou que na missão do defensor “também se desenvolve uma espécie de magistratura. As duas se entrelaçam, diversas nas funções, mas idênticas no objeto e na resultante; a justiça”.
Desde que surgiu em uma praça pública de Atenas, o advogado carrega como missão primeira, antes de alegar, se for o caso, a inocência de seu cliente, garantir-lhe um julgamento legítimo, justo, baseado, como iria consolidar depois o Estado Democrático de Direito, no devido processo legal. A roda da História girou no sentido de proteger as pessoas contra os abusos do Estado (mas não apenas do Poder Executivo...), sobretudo nos regimes de exceção. Consolidou-se como cláusula pétrea a noção de que em hipótese alguma haverá legitimidade no processo se ao acusado não for efetivamente assegurado o direito a mais ampla defesa.
Com fundamento nesses inabdicáveis princípios civilizatórios do Direito Penal, um advogado de Foz do Iguaçu (PR) impetrou perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ordem de habeas corpus em favor de uma cliente condenada por tráfico de drogas.
Não visava à anulação da ação penal, extinção da punibilidade ou absolvição da paciente, mas tão somente à adequação da pena imposta na sentença aos parâmetros legais estabelecidos para a hipótese de configuração do instituto da continuidade delitiva, em que as condutas ilícitas repetidas em breve espaço de tempo são consideradas uma unidade jurídica (não várias) e, por isso, menos severamente punidas.
Sorteado relator para o julgamento desse habeas corpus, o insigne ministro Rogerio Schietti Cruz, surpreendendo os incontáveis admiradores que no métier sorvem-lhe o notável saber jurídico, restringiu a equivalência da magistratura que Rui apontou nos papéis de defensor e julgador. É que, embora tenha reconhecido que “o advogado é essencial ao Estado Democrático” e “exerce um munus publicum de colocar à disposição do seu cliente todos os meios técnicos adequados à garantia dos direitos de seu mandante”, negou o habeas corpus pela tão exótica quanto inédita razão de estar a impetração vazada em “nada mais nada menos do que 115 páginas”.
Ao escrever mais do que o juiz estava disposto a ler, o advogado foi acusado de cometer “verdadeiro abuso do direito de petição, conduta que, evidentemente, deve ser coibida”. O mérito da causa e o direito pleiteado – jus libertatis – pelo paciente à luz da lei sucumbiram ao tamanho da petição. Cite-se, ainda, a urgência inerente ao instituto do habeas corpus, que se impõe até à forma como é ajuizado. Em 2015, o próprio STJ apreciou igual pedido de preso em centro de detenção provisória do Estado de São Paulo escrito em tiras de papel higiênico.
O culto ministro fundamentou sua decisão no artigo 210 do Regimento Interno do STJ, que dispõe: “Quando o pedido for manifestamente incabível, ou for manifesta a incompetência do tribunal para dele tomar conhecimento originariamente, ou for reiteração de outro com os mesmos fundamentos, o relator o indeferirá liminarmente”. A mais discreta curiosidade de um rábula de literatura suscitaria a dúvida: em qual das três hipóteses negatórias ancorou-se aquela decisão, se, ao que ficou explícito, considerou-se inapropriada a leitura do cartapácio produzido pelo advogado?
Chama atenção que das 115 estigmatizadas páginas da impetração, cerca de sete contêm os argumentos da defesa, em que estão digitados aproximadamente 4 mil caracteres – menos que este artigo de jornal. As demais 108 páginas (94%, aproximadamente) são meras transcrições de longas manifestações do Ministério Público nos autos.
A mais extravagante denegação de habeas corpus que se conhece no Judiciário do Brasil ficaria como um caso pitoresco não fosse a lavra do ministro em causa cintilante referência nos tribunais superiores. Muito admirado é o seu comprometimento com o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos.
Pela respeitabilidade de Sua Excelência, é de temer que seu paradigma da brevidade sintagmática seja tomado como referencial por homólogos que, a despeito de mui bem estruturados, e dispondo de assessores para ler petições e preparar minutas de decisões, venham, como receou Rui Barbosa, a hesitar diante de suas responsabilidades democráticas.
Nesses tempos em que emojis substituem palavras, carinhas valem por frases, o perigo é impor-se um modelo de petição baseado nos 140 caracteres lançados pelo Twitter, que logo cuidou de abreviar-se de sete à única letra X. Como o padre Antônio Vieira, também peço desculpas por este texto tão longo, dada a falta de tempo para ser breve.
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ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO FEDERAL