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Opinião | Quando o remédio pode virar veneno

A plataforma consumidor.gov.br é mais uma porta, e não uma anteporta, para a solução de litígios de consumo

Por Felipe Gomes Manhães

A plataforma consumidor.gov.br é um sítio na internet criado a partir do Decreto n.º 8.573/15, para ser um sistema alternativo de solução de conflitos de consumo e estimular a autocomposição entre consumidores e fornecedores. É um serviço público gerenciado pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), braço do Ministério da Justiça, e acompanhado pelos membros do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, agências reguladoras e fornecedores. O mecanismo visa a otimizar a elaboração e execução de políticas públicas de defesa dos consumidores e incentivar a competitividade no mercado pela melhoria da qualidade de produtos, serviços e do atendimento ao consumidor.

No entanto, surgiu uma corrente, mesmo que apequenada, que defende o condicionamento da ação judicial para resolução de um conflito de consumo ao prévio registro de reclamação na plataforma consumidor.gov.br, caso contrário, a ação deveria ser extinta sem resolução de mérito por falta de interesse processual. Essa tese, adianta-se, é ilegal e inconstitucional.

A Constituição de 1988 abriu as portas da justiça para todos. O ditame para a elaboração do Código de Defesa do Consumidor, único código feito por mandamento constitucional, é um claro exemplo. Na mesma direção, determinou a criação dos juizados especiais. Com isso, observamos que, além de munir o cidadão de direitos, a Constituição também ofereceu as ferramentas para exercê-los.

A premissa de que o sistema de justiça está abarrotado de processos é deveras conhecida por todos os operadores do Direito, no entanto, cercear a entrada de consumidores com direitos violados não pode ser considerada uma alternativa para desafogar o Judiciário.

Caso fosse criada norma jurídica nesse sentido, esta seria fulminada pela ilegalidade e inconstitucionalidade. Em primeiro lugar, não haveria sequer paridade entre os consumidores que têm e os que não têm acesso à internet. Em outras palavras, estaríamos condicionando o acesso à Justiça ao acesso à internet. Segundo pesquisa feita em 2021 pelo IBGE, 28,2 milhões de brasileiros não têm acesso à internet.

O artigo 17 do Código de Processo Civil define os requisitos para a postulação em juízo, quais sejam, o interesse e a legitimidade. Excetuando-se a legitimidade que não está sob ataque, o interesse divide-se doutrinariamente em dois elementos, o interesse-necessidade e o interesse-adequação. O primeiro elemento, aqui em discussão, é justamente a necessidade do postulante de pedir um provimento jurisdicional, é a justificativa para requerer ao Estado a sua intervenção para a solução de um direito violado. Para isso, a parte deve demonstrar, na peça de manejo, os fatos, os fundamentos jurídicos, as provas que possui, etc., e o juiz há de analisar, como desde os primórdios do Poder Judiciário no País, e admitir ou não aquela ação, observando critérios formais previstos no codex processual. Se da análise faltar um requisito obrigatório, a ação poderá, via de regra, após o exercício do direito de emendá-la, ser extinta sem resolução de mérito. Em outras palavras, a análise do interesse-necessidade, como conhecemos, já é feita pelo magistrado, no mínimo, desde 1939, quando do primeiro Código de Processo Civil brasileiro, e não há necessidade alguma de reinterpretá-lo restritivamente, até porque encontra obstáculo constitucional.

Há, para aqueles que defendem a ideia, uma deturpação do interesse de agir, especificamente em relação ao elemento da necessidade concreta do processo. Se há um conflito a ser reclamado no consumidor.gov.br, já há interesse. E esse interesse será demonstrado na petição inicial, como sempre houve de ser.

A busca da prestação jurisdicional para resolução de um defeito ou vício do produto ou serviço já é um árduo caminho, pela burocracia e pela morosidade do sistema de justiça. A via do consumidor.gov.br é, e deve continuar sendo, uma outra alternativa a esse caminho, não um caminho prévio obrigatório que apenas estenderá a distância entre o consumidor insatisfeito e a solução do seu problema.

O Estado tomou para si a jurisdição, e por isso não deve criar meios para dela se esquivar e imputar ao jurisdicionado consumidor mais um quebra-mola na tortuosa estrada da resolução de seus problemas. De mais a mais, a Constituição de 1988 é clara em seu artigo 5.º, XXXV: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Ademais, se os fornecedores, por meio de seus canais de atendimento ao cliente, atendessem de forma eficiente as demandas dos consumidores, muitas delas não precisariam ser levadas à plataforma, e menos ainda ao Judiciário.

Portanto, a plataforma consumidor.gov.br é, e deve ser considerada, como um indicador de qualidade dos serviços prestados, um termômetro a fim de medir os níveis de insatisfação dos consumidores e uma ferramenta alternativa de resolução de conflitos. Noutras palavras, é mais uma porta, e não uma anteporta, para a solução de litígios de consumo.

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ADVOGADO, DIRETOR ESTADUAL DO INSTITUTO BRASILEIRO DE CONSUMIDORES E TITULARES DE DADOS, DIRETOR JURÍDICO DO FÓRUM NACIONAL DAS ENTIDADES CIVIS DE DEFESA DO CONSUMIDOR, É MEMBRO DA COMISSÃO ESPECIAL DE DEFESA DO CONSUMIDOR DO CONSELHO FEDERAL DA OAB

Opinião por Felipe Gomes Manhães