No dia 20 de dezembro, quatro jogadoras do time feminino de futebol do River Plate foram presas por ofensas raciais dirigidas a atletas do Grêmio. Em editorial, O Estado de S. Paulo entendeu exagerada a medida, e defendeu que o caso fosse tratado como indisciplina desportiva, e não como crime. Sanções, como a expulsão e a proibição de participar de outras partidas, seriam suficientes para a reprovação do ato.
Não parece correta a opinião do jornal.
O ambiente esportivo é peculiar e admite, sem dúvida, atos distintos daqueles praticados em outros contextos. Um soco no rosto é legítimo no boxe, mas crime em uma reunião de condomínio. Uma jogada de futebol americano poderia ser tratada como rixa, se ocorresse nas arquibancadas. Mesmo os exageros e descumprimento de regras têm um tratamento distinto. Uma rasteira no futebol, um soco abaixo da cintura no boxe podem causar a expulsão, enquanto, na rua, são delitos de lesão corporal.
Isso acontece porque, no esporte, os participantes aceitam expor sua integridade a um certo risco. Concordam em se submeter a perigos inerentes à atividade, como pequenas lesões ou até impropérios de oponentes, considerados crime em outros ambientes.
Mas há limites. Se a agressão for além do razoável, as coisas mudam de figura. Caso um boxeador use seus pés para quebrar a perna do adversário, ou um jogador de futebol, em ato de fúria, pisoteie o oponente até causar uma lesão grave, a ação deixa a arena esportiva e passa ao campo criminal. O árbitro será substituído pelo juiz e o cartão vermelho, pela prisão.
É aqui que entram as ofensas raciais.
Injúrias comuns, infelizmente, são frequentes no futebol, e acabam por ser consideradas “parte do jogo” em razão da pequena gravidade do ato (pena de detenção de um a seis meses ou multa) e pela previsão legal de não aplicação de pena quando o ofendido provocou diretamente a injúria ou quando houver retratação por parte do agressor.
As injúrias raciais são tratadas de outra forma. A lei prevê sanções mais rigorosas: dois a cinco anos de prisão, uma pena mínima 24 vezes maior que a fixada para a injúria comum, aumentada se for cometida por várias pessoas ou em contexto de recreação ou diversão. Mais: não há qualquer previsão de não aplicação da pena nos casos de provocação ou de retratação do ofensor.
O maior rigor não vem do acaso. Vem do reconhecimento institucional de um massacre histórico dos escravizados, da supressão da liberdade de milhões de pessoas, de torturas, estupros e mortes autorizados, protegidos pelo Estado, e fundados em um único elemento: a cor. Uma tragédia que não terminou com a Lei Áurea, que persiste em abordagens policiais, no bullying escolar, seleções de emprego, e em tantas frestas de um sistema aparentemente igualitário, mas acomodado sobre um racismo estrutural, que assola com violência silenciosa o cotidiano de suas vítimas.
Nesse contexto, a injúria racial no jogo de futebol não é uma simples ofensa. O editorial do Estadão cita que o célebre jogador Diamante Negro não levava a sério injúrias em campo porque “a mãe que você leva para o campo não tem nada a ver com a mãe que você tem em casa”. Isso não vale para a raça. Não há cor em casa ou fora de casa, a cor é parte da pessoa, sua personalidade, origem e trajetória. É carregada aonde quer que se vá, com toda sua história e carga de dignidade e preconceito. A ofensa que a marca é diferente de xingar a mãe de outro jogador. Essa é cicatrizável e superficial, aquela é profunda, carrega uma história de horrores coletivos, que assombra não só o passado, mas também o presente e o futuro do afetado.
Só isso seria o suficiente para justificar o caráter criminoso da injúria racial no futebol. Mas há um argumento definitivo: a lei prevê expressamente a punição penal da ofensa racial quando cometida no contexto de atividades esportivas, fixando, em tais casos, para além da prisão, a proibição dos autores de frequentar, por três anos, locais destinados a práticas esportivas.
Se a lei prevê expressamente uma punição criminal para a injúria em ambientes esportivos, não há espaço para sustentar o contrário, e defender que justamente nesses casos uma sanção menor seria suficiente.
Desprezar a lei nesse contexto é acenar para o preconceito nas arquibancadas, vestiários, treinos, colégios e outros locais. Jogos são assistidos por milhares de pessoas, e o comportamento de atletas é reprisado por adultos e crianças, nos mais diferentes meios sociais. Se a injúria racial é mero ilícito esportivo na arena oficial, também o será na pelada, no jogo escolar, e em qualquer esporte profissional ou amador, criando-se uma escala para a perpetuação do racismo.
A arena esportiva não é espaço de impunidade. Racismo é crime, dentro ou fora do campo. É preciso compreender a gravidade dessa prática sob pena de estendermos um tapete de conforto àqueles que, sob o manto do esporte ou da liberdade artística, colocam mais uma farpa no arame do racismo estrutural que amarra o País.
*
ADVOGADO, É PROFESSOR DE DIREITO PENAL DA USP