A reforma da Previdência não se reduz à idade para aposentadoria: ela trata da repartição dos recursos da sociedade entre os seus diversos grupos, especialmente entre gerações, ocupações e sexos. É um drama que se desenrola em vários atos.
Entra a demografia. De acordo com as previsões demográficas do IBGE, quando a presente geração de 20 anos estiver completando 60 anos, em 2060, teremos cerca de 2,1 milhões de nascimentos por ano, cerca de 45,4 milhões de brasileiros abaixo de 20 anos, 73 milhões acima de 60 anos e 94,6 milhões entre 20 e 60 anos. Hoje essas proporções são muito diferentes: 1,5 milhão de nascimentos, 60 milhões abaixo de 20 anos, 30 milhões acima de 60 anos e 121 milhões entre 20 e 60 anos. O poder de pressão dos diferentes grupos etários vai mudar. A maioria dos aposentados, com 20 ou mais anos de perspectiva de vida, vai lutar ferozmente pelos recursos governamentais cada vez mais escassos - não apenas para assegurar suas aposentadorias e pensões, mas também para saúde e outras necessidades. Do outro lado, as crianças terão competidores com mais poder e voz, especialmente os idosos, com quem terão de lutar por esses recursos.
A população em idade ativa terá de produzir riqueza para se manter, bancar suas aposentadorias e ainda custear as demais. Mais do que nunca, a produtividade da força de trabalho será vital para assegurar o bem-estar da sociedade. E precisaremos assegurar que todos os indivíduos tenham condições de ser produtivos. Em resumo, o futuro dependerá da primeira infância.
Entram as diferentes ocupações. Militares deveriam ter tempo diferenciado? E professores? O que justificaria o tratamento diferenciado? Difícil dizer. Do ponto de vista dos alunos e das famílias, por exemplo, vale mais ter um professor bem remunerado na ativa do que um professor jovem aposentado. Decisões dessa natureza sempre implicam alocar recursos a favor de um grupo em detrimento de outro. Ademais, o aumento da expectativa de vida e as mudanças tecnológicas tornam cada vez menos prováveis as carreiras longas. A melhor aposta é que a maioria dos profissionais vai mudar de ocupação ou profissão ao longo da vida.
Entram as mulheres. Haveria três razões para tratar diferentemente a idade de aposentadoria das mulheres. Uma tem razões históricas e culturais. Dentre 35 países listados no relatório da OCDE de 2017, 24 deles mantêm idades iguais de aposentadoria para homens e mulheres. Nos 11 países onde há diferença a favor das mulheres, ela se situa entre dois e três anos. A maioria das pessoas nesses países se aposenta cerca de três a cinco anos depois da idade obrigatória. Não é possível identificar uma tendência associada a tipo de país ou cultura - as semelhanças e diferenças se verificam nos mais distintos países.
A outra razão seria a expectativa de vida. Os estudos sobre longevidade mostram que, em geral, as mulheres vivem cinco anos e meio mais que os homens. A diferença já foi maior, mas tem aumentado a perspectiva de vida de ambos os sexos.
Uma terceira razão para se aposentar mais cedo seria compensar as diferenças salariais da mulher no mercado de trabalho. Há dois conjuntos diferentes de justificativas. O primeiro seria o de compensar as diferenças de salário pago às mulheres ao longo da vida profissional, que se devem a fatores culturais e biológicos, relacionados até mesmo à maternidade. A segunda, específica para as mães, refere-se às perdas devidas à licença-maternidade e à maior carga de responsabilidade pela educação dos filhos, que causa custos adicionais de reinserção no mercado de trabalho. Mas dificilmente reduzir o tempo para se aposentar seria um mecanismo adequado para compensar tais diferenças.
Entra a primeira infância. As evidências sobre a importância dos mil primeiros dias de vida a contar da gestação, bem como da interação da criança com os pais, já são suficientes para sugerir o aprimoramento de nossas incipientes políticas para a primeira infância. A discussão da reforma da Previdência poderia ser um momento oportuno para propor uma barganha em favor da primeira infância: em vez de aposentadoria precoce para as mulheres, por que não aumentar para pelo menos um ano a licença-maternidade? Aí, sim, os argumentos econômicos são robustos.
O pacote da licença poderia ser aplicado aos pais (ou mesmo avós - os chamados “cuidadores primários”), incluídos os casos de adoção. E poderia estar associado à efetiva capacitação de pais em habilidades “parentais” - relativamente fácil de acoplar ao sistema de saúde e assistência social. No caso das famílias mais vulneráveis, essas medidas certamente precisariam ser complementadas por outros tipos de assistência e apoio. Os custos para a sociedade seriam sensivelmente menores do que reduzir a idade para a aposentadoria. Os benefícios para as crianças e para a sociedade seriam incomensuravelmente maiores. Quanto a isso não restam dúvidas. Além do mais, os custos seriam muito menores do que creches públicas, que dificilmente terão condições de oferecer, especialmente aos mais carentes, a qualidade necessária para compensar as carências associadas à origem socioeconômica. Todas as evidências nacionais e internacionais mostram que, infelizmente, o maior papel da creche é possibilitar o trabalho das mães, e não promover o desenvolvimento das crianças. Por outro lado, há evidências de que as políticas de licença de maternidade e de flexibilização e redução de horas para as mães de crianças pequenas podem contribuir para aumentar a participação e a reinserção das mulheres no mercado do trabalho.
A reforma da Previdência dificilmente constitui um instrumento adequado para lidar com a questão da desigualdade salarial das mulheres. Mas poderia criar incentivos para um melhor cuidado com as crianças e, dessa forma, elevar exponencialmente o potencial do capital humano do País.
*JOÃO BATISTA ARAÚJO E OLIVEIRA É PRESIDENTE DO INSTITUTO ALFA E BETO