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Opinião | Regular o Airbnb

Podemos aproveitar a oportunidade para avançar no diagnóstico e no desenho de uma regulação que olhe para a intransparência do cenário atual

Por Bianca Tavolari e Marcella Puppio

Em agosto, a Receita Federal anunciou que adotará novas medidas para cobrar Imposto de Renda (IR) de quem recebe aluguel via plataformas de compartilhamento de moradia como o Airbnb e Booking. Ainda que o tributo seja devido, o cenário é de sonegação e intransparência. Hoje, a responsabilidade de declarar é dos anfitriões que disponibilizam suas unidades para estadia. Não há responsabilidade própria das plataformas; tampouco há mecanismos para fiscalização de usuários que deixam de declarar seus rendimentos. Provocada pela indústria hoteleira, a Receita está desenhando, conforme noticiou este jornal, um pente-fino retroativo e uma política para o futuro, de forma a garantir a diminuição da assimetria de informação entre o Fisco e as plataformas – e, portanto, maior controle e arrecadação.

O tema não é novo. Desde o início da operação das plataformas no Brasil, a ambição regulatória orbita entre dois polos: por um lado, as demandas do setor de hospedagem por nivelamento da concorrência; por outro, a oportunidade de arrecadação com a nova atividade econômica. A tributação foi eleita como instrumento primordial. Em 2017, a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis ajuizou ação perante o Supremo Tribunal Federal (STF) para que as diárias fossem divididas entre um componente de serviços, sob o qual incidiria Imposto sobre Serviços (ISS), e um componente de locação, em que o imposto não seria devido. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 5.764 não mencionava o Airbnb, mas a referência era clara: em vez de reivindicar diretamente que a plataforma fosse tributada, a demanda passou a ser a redução correspondente de imposto do setor hoteleiro. Já na outra ponta, cidades como Caldas Novas e Ubatuba, pioneiras na regulação municipal, decidiram pela incidência de ISS para as transações, sem entrar no mérito de que tipo de serviço é de fato prestado. As plataformas reivindicam que são meras intermediárias.

Agora a discussão se desloca do ISS para o IR. No entanto, os contornos da discussão permanecem antigos, sem levar em conta o quanto cidades e países avançaram na formulação de diagnósticos, produção de evidências e desenhos da regulação. Há ao menos dois gargalos e boas razões para ampliar o escopo regulatório.

Primeiro gargalo: não temos acesso aos dados das plataformas. Hoje, não sabemos quantas são as transações, o valor médio das diárias, as concentrações geográficas. Estamos no escuro. Essa é uma batalha em todos os lugares, como evidenciam os casos recentes de Nova York e Berlim. Se a informação permanecer exclusivamente com as empresas, controlar a sonegação é um horizonte utópico. A avenida aberta de sonegação é, inclusive, vantagem competitiva ilícita. Sem informação, vamos continuar a pressupor, erroneamente, que as unidades são oferecidas por pessoas físicas almejando renda extra. Há muito o problema de usuários comerciais, com concentrações de centenas de anúncios, está no radar da regulação internacional. É preciso avançar nessa diferenciação. Além disso, para que dados pessoais sejam protegidos, a literatura tem sinalizado para as vantagens de tributar a própria plataforma – e não tanto seus usuários.

Segundo gargalo: não definimos que tipo de atividade as plataformas desempenham. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que condomínios podem proibir a oferta de unidades no Airbnb por se tratar de relação comercial. Mas o tribunal decidiu que se trata de um contrato atípico, nem hospedagem, nem locação. A ausência de definição é muito conveniente para as plataformas. Não está estabelecido se há responsabilidade jurídica na intermediação, se há relação de consumo, equiparação com imobiliárias, ou mesmo concorrência com a rede hoteleira. Tributar sem discutir esses pressupostos é perder a oportunidade.

A contraposição entre plataformas e hotéis conta apenas uma parte da história. Cidades no mundo todo avançam na discussão sobre o impacto do Airbnb, Booking e outros no mercado residencial de locação de longo prazo, no mercado imobiliário e, especialmente, no planejamento urbano e no direito à moradia. A agenda aqui é enorme: substituição de locatários moradores da cidade por locações temporárias, privilegiando turistas; aumento dos valores do aluguel, que passam a ser medidos em diárias; despejos e remoções; transformações da vida nos bairros; ineficácia do planejamento urbano. Sobre este último ponto, dois exemplos graves de São Paulo são ilustrativos: critérios de adensamento populacional perdem força se as unidades residenciais não forem destinadas a moradores fixos da cidade, e já não é mais incomum encontrar unidades de Habitação de Interesse Social (HIS) nas plataformas de short stay.

A cobrança do Imposto de Renda é uma pequena ponta do problema. Podemos aproveitar esta oportunidade para avançar no diagnóstico e no desenho de uma regulação que não olhe apenas para concorrência e arrecadação, mas também para a intransparência injustificável do cenário atual, estabelecendo obrigações claras para as plataformas e levando os impactos na moradia e nas cidades a sério.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA DA FGV DIREITO SÃO PAULO, PESQUISADORA DO CENTRO BRASILEIRO DE ANÁLISE E PLANEJAMENTO (CEBRAP); E MESTRANDA PELA FGV DIREITO SÃO PAULO

Opinião por Bianca Tavolari

Professora da FGV Direito São Paulo, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

Marcella Puppio

Mestranda pela FGV Direito São Paulo