Se a maior ameaça que paira sobre o mundo é o aquecimento global, é incompreensível que o Brasil negligencie a política estatal de regularização fundiária. Qual o vínculo entre essas duas constatações?
O desmatamento da maior floresta tropical, de que restam apenas 4/5, é causa direta da emissão dos venenosos gases do efeito estufa, causadores do aquecimento global. E o ritmo da devastação na hileia brasileira decorre de várias causas. Cupidez, ignorância, a nefasta “auri sacra fames”, porém tudo se torna irreversível diante da total irregularidade fundiária da região.
Sem saber a quem pertencem as terras cuja cobertura vegetal é dizimada sem piedade, não há como responsabilizar os infratores. A balbúrdia registral inibe o investimento de empresas e entidades interessadas em reflorestar, porque a insegurança jurídica amedronta o mais altruísta entre os restauradores da biodiversidade.
Toda aquela região é pródiga nos vários andares de registro imobiliário, pois há superposição de inscrições na circunscrição ainda desprovida de tecnologias da quarta revolução industrial. O panorama atrai toda espécie de ilicitude, principalmente a delinquencial.
Um governo sério convocaria uma cruzada para um enfrentamento consistente e definitivo deste problema que corrói as potencialidades atuais da recuperação econômica de um país que se sujeitou a orçamentos secretos e que, em lugar de debelar a fome, preferiu avolumar os famigerados fundões (Eleitoral e Partidário).
É que a regularização fundiária é um órfão de muitos pais. Todos são responsáveis por ela: governo (nas três esferas da Federação atípica inventada no Brasil), sociedade, os verdadeiros patriotas, aqueles que querem um Brasil efetivamente justo, fraterno e solidário. Todavia, um dos responsáveis deveria liderar este movimento: o registrador imobiliário.
É ele que tem condições de aferir a realidade jurídica das terras a cujo zelo e garantia o sistema o preordenou. Tem o diagnóstico preciso da situação registral de sua circunscrição. Sabe quais as falhas, as deficiências, os equívocos, as situações suspeitas e que merecem correção.
Toma-se conhecimento de que algumas importantes instituições financeiras tomaram para si a missão de reflorestar áreas da Amazônia Legal. Elas são mais do que interessadas em que esse projeto não padeça de desconformidades legais. Podem ser chamadas a colaborar neste processo de fazer com que o Brasil real se ajuste ao Brasil legal.
As instituições mais empenhadas em ver instaurada a democracia de elevada maturidade que o brasileiro de bem reclama e pela qual aspira também devem participar desta verdadeira epopeia. Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por si e pelas entidades de classe, mais desenvoltas quando se cuida de empolgar uma bandeira nacionalista e isenta de partidarismos. A poderosa indústria da construção civil e suas conexões tem todas as credenciais para mergulhar neste plano de excepcional relevo.
Para a envergadura do que se pretende, será necessário conclamar as representações profissionais dos arquitetos, dos agrônomos, dos agrimensores, aqueles que trabalham com o mais sensível elemento, o capital humano. Sociólogos, assistentes sociais, psicólogos, educadores. A mídia, para que o Brasil se comova com a causa, pois, se bem elaborada, executada e, portanto, presumivelmente bem-sucedida, ela ajudará a todos, indistintamente.
Uma promissora perspectiva está no horizonte: o advento da Lei n.º 14.382, de 22/6/2022, que cria o Serviço Eletrônico de Registros Públicos. Aproveitar-se de todos os recursos tecnológico para redesenhar o Brasil em termos jurídicos – notadamente em relação ao direito fundamental tão relevante e explicitado no artigo 5.º da Constituição, a propriedade – entusiasma todos aqueles inconformados ante a vetustez paralisante do sistema Justiça.
Todos os instrumentos normativos convergem para que, finalmente, o trato do tormentoso assunto da regularização fundiária mereça a devida atenção e venha a ser tratado como merece.
Todavia, não é apenas a dimensão macro que fará diferença num Brasil tão necessitado de esperanças concretizáveis. O pequeno ocupante de minúscula gleba de chão, que nela edificou sua casinha, quanta vez não é considerado invasor, morador clandestino, posseiro, quando – na verdade – é vítima de inescrupulosos especuladores da terra. Pagou, religiosamente, as prestações e se vê impedido de ser o titular dominial do que é seu, por legítimo direito.
A regularização, para este humilde brasileiro, não é tema sofisticado, como pode soar a mera menção a “regularização fundiária”. Não. Para ele é muito mais. É o resgate de sua cidadania. Ele passa a ser dono de sua residência. Passa a ter endereço. Pode obter pequenos empréstimos para reformá-la, aumentá-la, embelezá-la. Tudo isso representará importante injeção na economia brasileira. Mais do que isso, reacenderá o sonho de um Brasil melhor, em que todos tenham o seu espaço digno e o seu lugar ao sol.
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REITOR DA UNIREGISTRAL, DOCENTE DA PÓS-GRADUAÇÃO DA UNINOVE, É PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS (2021-2022)