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Opinião|Roteiro de uma destruição

Não devemos contar com salvadores da Pátria, quem redime o País é o voto consciente

Por Miguel Reale Júnior

Fatos avassaladores foram trazidos à luz pelas delações dos executivos da Odebrecht, em declarações transmitidas pelas redes sociais e de televisão. Lula, o Amigo, foi desmascarado: de líder da esquerda a “bon-vivant”. O interesse nacional, segundo os delatores, ficou sempre em segundo plano ante o interesse pessoal. No caso de Lula, feliz dono do triplex, tal ocorreu em diversos momentos, mas também na vida de líderes dos principais partidos, PMDB, PSDB, DEM, PP, PSD, PDT...

Quais as razões desse desastre da política brasileira? Em recente trabalho, José de Souza Martins diz: “Temos o capitalismo da ‘lei de Gerson’, o capitalismo da corrupção”. E conclui: “Nesses últimos 30 anos o Brasil aniquilou a política e a esperança política” (Coletânea O Brasil no Contexto 1987-2017). Por que tal se deu com a redemocratização?

A destruição da política iniciou-se na Constituinte e seu principal responsável foi Sarney, com a compra dos cinco anos de mandato e a imposição do presidencialismo gerador da ingovernabilidade e da crise entre Poderes. Cabe saber: o que houve na Constituinte?

O sistema parlamentarista presidencializado foi adotado pelos constituintes nas diversas fases dos trabalhos, com previsão de primeiro-ministro, plano de governo e Ministério aprovados pela Câmara dos Deputados, destituição do governo por moção de censura.

Na fase final, já em plenário, foi votado o capítulo do Poder Legislativo (artigos 44 a 75 da Constituição), característico do parlamentarismo. Chegou-se, então, à votação, do capítulo seguinte, Do Poder Executivo, quando Sarney, diante da resistência à concessão de cinco anos de mandato, resolveu cacifar a proposta do presidencialismo com cinco anos.

A emenda presidencialista venceu com maioria conquistada à custa da distribuição de canais de rádio e televisão pelo Ministério das Comunicações. Foi o primeiro mensalão. Numa Constituição parlamentarista se inseriu o corpo estranho do presidencialismo. Foi um momento de vergonha.

Em 1989, na eleição para presidente, os partidos e os políticos tradicionais foram tragados pelos populistas Collor, o playboy do jet sky, caçador de marajás, e Lula, o sindicalista que encantara os intelectuais e a classe média. Ulysses, Aureliano Chaves, Brizola, Covas, Maluf foram dizimados. Prevaleceu o carisma, não o partido.

O sistema proporcional para a Câmara dos Deputados impôs gastos significativos a uma eleição em que o voto depende da eficiência de cabos eleitorais (prefeitos, vereadores, líderes comunitários) cujo custo é elevado. Favorece-se a criação do caixa 2. É complicado formar maioria parlamentar com bancadas que não têm identidade ideológica ou programática, quando os deputados representam muitas vezes categorias profissionais ou religiosas, em evidente corporativismo.

Collor logo perdeu a base parlamentar. Seu plano contra a inflação fracassou. PC Farias passou a tratar dos grandes contratos da União. A ganância levou ao impeachment.

No Poder Legislativo a corrupção também se instalara. O escândalo dos “anões do Orçamento” mostrou, em 1993, o conluio entre empreiteiras, parlamentares e prefeituras. No entanto, houve um grande acordo para escamotear a verdade, sendo atingidos alguns parlamentares, mas preservados os empreiteiros e os líderes partidários.

A impunidade foi mau exemplo, pois grassou a corrupção como forma de agir de administradores em todos os níveis, com a participação primordial das empreiteiras. O capitalismo e a ditadura da propina avançaram.

Fernando Henrique Cardoso, eleito como o mágico vencedor da inflação, promoveu reformas, mas não a da política, infelizmente, um grande erro. Não foi só graças ao seu prestígio que se equilibrou a relação Executivo-Legislativo, pois o “toma lá, dá cá” esteve presente nas emendas parlamentares, que perduravam.

Mas a corrupção sistêmica e serial instalou-se com o governo do PT, ao não dividir o poder. Por essa tática se dava ao partido aliado a chefia de um ministério, mas toda a estrutura ministerial – do secretário executivo para baixo – vinha a ser ocupada por correligionários. Para garantir maioria parlamentar, sem participação efetiva dos partidos aliados no governo, passou-se a comprar deputados. Nasceu o mensalão. E depois o chamado petrolão, em vista de a rapina na Petrobrás financiar a corrupção.

Medidas provisórias foram escritas por e para empresas. Acabou a política: os destinos da Nação passaram a ser ditados pelos corruptores, adquirentes dos líderes da classe política.

O presidencialismo e o voto proporcional impulsionaram o caminhar na ilicitude para ganhar eleição e para governar. Sem dúvida, o certo seria o parlamentarismo e o voto distrital misto. Mas como obter essa conquista?

Neste instante delicado de refazimento da economia, uma Constituinte seria risco sem tamanho, pois se sabe como começa, não se sabe como termina, com imensa insegurança jurídica. Com pouco tempo, temos de nos contentar com a criação da cláusula de barreira, limitadora dos partidos políticos, e com a proibição de coligações legislativas, matérias objeto de emenda constitucional já aprovada no Senado, além de repensar o financiamento de campanha.

No mais, resta contar com a agilidade do Judiciário. Os processos da Lava Jato e outros estão para sentença. A nossa proposta de força-tarefa, aceita pelo Colégio de Institutos dos Advogados e pela OAB, foi agora adotada pela presidente Cármen Lúcia do STF e apressará a tramitação dos processos na Suprema Corte.

A política brasileira ganha com as redes sociais e com os movimentos de rua novos atores e haverá grau mais elevado de conscientização do eleitorado. Não devemos contar com salvadores da pátria. Quem redime o País é o voto consciente, que afastará o mau político.

*Advogado, professor titular senior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça