Seja na vida política, seja na definição da solução correta no âmbito da nossa Suprema Corte, tem-se a percepção de profunda incerteza. No Supremo Tribunal Federal, importantes julgamentos relativos à organização política ocorrem e não ocorrem ao mesmo tempo. Em matérias de grande relevo, a maioria dos ministros já votou, mas os julgamentos foram interrompidos por força de pedidos de vista, faz bom tempo. Ficamos no limbo.
O partido Rede Sustentabilidade interpôs ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 402) visando a impedir que réu venha a ocupar a linha sucessória de presidente da República. A posição adotada por seis ministros foi no sentido de considerar indevido que parlamentar réu (presidente da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal) venha a substituir o presidente da República.
Essa medida deflui de interpretação rigorosamente lógica da Constituição. É uma decorrência do disposto no seu artigo 86, segundo o qual, ao se tornar réu, com denúncia ou queixa recebidos, o presidente da República imediatamente fica afastado da Presidência pelo prazo de 180 dias, dentro dos quais se deve dar o julgamento final da ação penal contra ele instaurada.
É óbvio que pessoa ré em ação penal não pode vir a ocupar a Presidência da República, pois seria contra o sistema e ilógico assumir a posição de primeiro mandatário aquele que tão logo ascenda ao cargo deva ser imediatamente afastado por 180 dias. A Constituição não autoriza que ocupe a Presidência pessoa submetida a processo criminal, assim como não permite que presidente da Câmara ou do Senado, na linha sucessória, exerça a Presidência da República por ser réu. Logo, não pode pretender ser presidente da República quem é réu.
Porém, apesar de a maioria dos ministros já se ter manifestado, o julgamento dessa questão está paralisado há um ano por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. É uma matéria essencial e urgente em vista das eleições presidenciais. Mas essa decisão se aplica não só a Lula, que responde a seis processos, já condenado em um, mas também a Fernando Collor, Jair Bolsonaro e Ciro Gomes, pretendentes à Presidência que figuram não apenas como investigados, e sim como réus em processos criminais. É forçoso que esse julgamento tenha rápido seguimento.
Outra decisão relevante diz respeito à proposta do ministro Luís Roberto Barroso, limitativa da competência do Supremo apenas aos crimes praticados por parlamentares durante o exercício do mandato e desde que o delito se relacione ao cargo de deputado ou senador.
Já expus em artigo as dificuldades causadas pela exigência de o fato dizer respeito ao exercício do mandato, questão sujeita a muita controvérsia. Mas basta a condição de o crime se dar em data na qual o acusado era parlamentar federal para aliviar o Supremo de imensa carga de trabalho. São casos de deslocamento de competência do STF, graças à aplicação desse critério, por exemplo, as investigações contra os senadores José Serra e Aécio Neves, objeto de inquéritos relativos a fatos ocorridos quando eram governadores de São Paulo e Minas Gerais, respectivamente, do que resultará a aceleração das apurações.
A favor desse critério já votaram oito ministros, mas Dias Toffoli pediu vista meses atrás. Congelou-se o julgamento com decisão já tomada pela maioria. Deveria, é evidente, haver rigor no cumprimento do prazo de 20 dias previsto na Resolução 278 do STF para ser devolvido a julgamento o processo objeto de vista. Na prática, um ministro com posição contrária à orientação já fixada tem a possibilidade de impedir a decisão da maioria, exercendo verdadeiro poder de veto.
Os fatos, como se vê, são e não são ao mesmo tempo, restando no campo do imaginário. A decisão já tomada paira aquém da realidade: o factual cede espaço a uma expectativa sem prazo para se atualizar.
O clima surreal prevalece no presente instante também no Executivo. Temer foi e não foi presidente. De início, em tosca visão meramente brasiliense do País, ficou de costas para a Nação, sem jamais ter comunicado à sociedade brasileira a razão clara dos projetos que propunha. Parecia imperioso ser impopular e limitar sua ação à conquista de votos no Congresso, com vista a medidas voltadas para o futuro. No meio desse caminho teve de conquistar votos não para o futuro, mas simplesmente para poder continuar na Presidência. Temer é e não é presidente.
Com improvisação inventou a intervenção na Segurança Pública do Rio de Janeiro. Um general em férias foi chamado a cumprir missão. Jogou-se para a plateia, como reconheceu em entrevista o marqueteiro do presidente, Elsinho, a ponto de aventar que, com a popularidade advinda da intervenção, Michel Temer venha a ser candidato à reeleição.
Novamente estamos entre o ser e o não ser. De um instante para outro, faz-se uma intervenção, cria-se um ministério, para preencher a agenda. Temer transformou o problema de décadas do Rio de Janeiro, a existência de Estado paralelo dirigido pelo crime organizado, em questão sua, para obter popularidade. Improvisou em matéria de alta complexidade, usando as Forças Armadas como instrumento de jogada política. Há uma intervenção e não há, tendo pelo meio a tarefa burocrática de montar um novo ministério...
Sem nenhum trabalho de inteligência de segurança pública – nos níveis estratégico, tático e operacional –, ausente a coleta e a análise de dados sobre a criminalidade e as polícias do Estado, com a inventada intervenção pôs-se fim à reforma da Previdência, antes razão de ser do mandato de Temer! Assumiu-se a segurança pública do Rio em busca de popularidade por via da mobilização artificial das emoções de uma população temerosa. No entanto, até agora, só propostas de longo prazo!
Quando a voltarão a vigorar a realidade concreta, a racionalidade, a definição do indefinido?
*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA