As manifestações de rua, o impeachment de Dilma, os primeiros processos criminais contra Lula, o panorama das eleições municipais, a prisão de Eduardo Cunha, a descoberta das entranhas podres das empreiteiras, a perspectiva de processos contra políticos de diversos partidos produzem a sensação de estarmos num Brasil diferente, no qual poderá haver seriedade na política.
Em recente pesquisa, 40% dos entrevistados responderam ser a responsabilidade fiscal importante diretriz a ser seguida pelo governo. Há, portanto, o reconhecimento da necessidade de seriedade.
A maioria da população conscientizou-se de não mais deixar-se enganar por uma política fiscal eleitoreira, com gastos acima da receita, desoneração tributária, redução artificial do preço do petróleo e da eletricidade, compondo um conjunto de leviandades promotoras da mais profunda depressão.
Ainda na interinidade, Michel Temer enviou ao Congresso a denominada PEC do Teto dos gastos públicos, pela qual, por determinação constitucional, os Poderes no âmbito federal terão seus gastos rigidamente limitados, não despendendo mais do que arrecadam.
As contas do governo Dilma em 2015, motivo do impeachment, foram reprovadas pelo Tribunal de Contas da União, tal como tinham sido as de 2014. O desarranjo nas contas públicas era de tal ordem que o déficit público reconhecido pelo governo interino, tão logo assumiu, alcançou R$ 170 bilhões.
Como realçado na exposição de motivos da PEC dos gastos, a dívida bruta do governo passou de 51,7% do PIB em 2013 para 67,5% em abril de 2016 e as projeções indicavam uma espiral na direção de 80% do PIB se medidas não fossem adotadas. No período da gastança federal, entre 2008 e 2015, a despesa pública cresceu, espantosamente, 51% acima da inflação, enquanto a receita subiu apenas 14,5%.
Para enfrentar esse desequilíbrio há dois caminhos: pedalar novamente, falseando as contas e tomando empréstimo dos bancos públicos, com fez Dilma em maquiagem mal feita, o que aumenta a desconfiança dos agentes econômicos, produz recessão e inflação; ou empreender uma política fiscal séria de médio prazo, rígida, sem fins eleitoreiros, pensando no futuro do País.
A PEC do Teto é corolário do impeachment, resultante do reconhecimento da culpa da ex-presidente por sua total irresponsabilidade na condução das finanças, a ser substituída pela adoção de política fiscal responsável, em que se diminua a despesa primária para conter a expansão da dívida pública.
Para direcionar a economia ao crescimento, no quadro atual de esfacelamento das contas públicas, é fundamental gerar confiança, objetivo alcançável apenas ao se demonstrar seriedade de propósitos, impedindo a extrapolação do gasto permitido. Ou seja, apenas autorizando gastar o correspondente ao exercício anterior acrescido da inflação. O segundo passo será a reforma da Previdência.
Nessa PEC 241, que se poderia também chamar de PEC da Responsabilidade Fiscal, não se apresenta, como se propala, insensibilidade às áreas da saúde e da educação, pois os 18% fixados na Constituição para a educação não são considerados teto, mas piso. Na saúde preveem-se 15% do Orçamento para 2017, mais do que em 2016. Além do mais, o limite mínimo de gastos não impede que o Congresso defina despesa mais elevada para saúde e educação, desde que consistente com o limite total de gastos. O ensino fundamental e médio, incumbência dos municípios e dos Estados, não se inclui nessa limitação constitucional.
A mesma seriedade exigível no enfrentamento das dificuldades financeiras deve estar presente no campo social, em vista da formação das pessoas, sem o que não haverá desenvolvimento. É essencial garantir, nas cidades com mais de 200 mil habitantes, a existência de centros de convivência com a prática organizada de esportes, a realização de espetáculos culturais (teatro, cinema, música) em parceria com a iniciativa privada, valendo-se dos estabelecimentos escolares existentes, a se transformarem em locais de socialidade nos fins de semana.
Essa medida, de baixo custo, deve ser empreendida como alternativa ao boteco, em cooperação com a sociedade, na periferia, onde a qualidade de vida é zero. Não há melhor prevenção da criminalidade, preocupação principal da população, do que o incentivo a formas de convivência como a competição esportiva e a criação artística.
Se hoje se percebe um Brasil em que a seriedade é objeto de apreço, é porque houve a bem-sucedida apuração de crimes de colarinho-branco, em especial a corrupção, vencendo a sensação de impunidade, a mostrar ser a efetividade da lei mais importante que a adoção de novas medidas.
Essa efetividade, contudo, pode desaparecer graças à proposta de anistia do crime de caixa 2 e em razão de artigo do projeto dos crimes de abuso de autoridade que criminaliza a decisão jurisdicional de não concessão de liberdade provisória quando presentes, inequivocamente, os requisitos para sua outorga. A livre convicção judicial poderá ser enquadrada como crime, com ameaça ao juiz da prática de delito por decidir em desfavor do réu.
A seriedade e a efetividade na repressão à corrupção estarão, sem dúvida, altamente comprometidas pelas desavergonhadas propostas de anistia do crime eleitoral do caixa 2 e de criminalização de decisão judicial que, invisíveis, rondam o Congresso. O Brasil de hoje, em busca de ética na política, não pode concordar que o Congresso promova a anistia do crime de caixa 2 para assegurar a impunidade de políticos que no passado se beneficiaram seja com propina ou com recursos não contabilizados. A descrença voltará a imperar.
As duas propostas merecem forte repulsa dos movimentos sociais, justificando que se convoquem os brasileiros a retornar às ruas. Não se podem permitir passos para trás.
*Advogado, professor titular senior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça