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Opinião | Sobre o projeto de renovação do Largo do Paiçandu

Arquitetos, urbanistas, representantes dos moradores, de instituições culturais, professores, por motivos diversos, mas convergentes, reagiram com perplexidade à proposta da Prefeitura.

Por Carlos Augusto Calil

Alertado por uma matéria publicada em O Estado de S. Paulo (Prefeitura prevê despejos para criar prédio de aluguel no Centro, 7/1), um grupo expressivo em quantidade e qualidade de interessados compareceu à audiência pública virtual organizada pela Prefeitura no dia 10 de janeiro passado.

Após a apresentação dos parâmetros da Parceria Público-Privada (PPP) por técnicos da Prefeitura, a rejeição foi unânime. Arquitetos, urbanistas, representantes dos moradores, de instituições culturais, professores, por motivos diversos, mas convergentes, reagiram com perplexidade à proposta.

Em linhas gerais, ela consiste em edificar dois prédios de residência na esquina da Avenida Rio Branco com o Largo do Paiçandu, onde no início do século 20 habitava a família de Mário de Andrade, que ali escreveu Pauliceia desvairada, uma das obras pioneiras do movimento modernista. Segundo a proposta, o largo propriamente dito deveria receber quiosques para comercialização informal. O edifício Olido – onde a Prefeitura mantém equipamentos culturais relevantes, como o Cine Olido, um dos últimos cinemas de rua da cidade; o Centro de Memória do Circo, instituição única no País; o FabLab, um núcleo de formação e pesquisa digital; a Vitrine da Dança, onde pares improváveis exercitam passos elaborados para o olhar público; etc. – seria desapropriado e na sua parte superior, instalada uma faculdade.

Na mesma calçada, logo após a Galeria do Rock, encontra-se o edifício do Cine Art Palácio, um dos cinemas icônicos da cidade, testemunha da Cinelândia, que envolvia os cinemas Marrocos, Ipiranga e Marabá, Paissandu, Windsor e Dom José. O Art Palácio, obra do notável arquiteto Rino Levi, é um patrimônio da arquitetura art déco da cidade, tombado pelos conselhos do patrimônio histórico do município (Conpresp) e do Estado (Condephaat).

Fora da área restrita do largo, mas ainda no seu entorno, logo ali na esquina da Avenida Ipiranga com a São João, no edifício Independência, onde se situa o simpático Bar Brahma, o projeto pretende instalar um centro de coworking.

São basicamente três as fragilidades da proposta da Prefeitura: ela não atende a um programa real, ancorado na vocação histórica e social dessa região da cidade, não aproveita investimentos feitos em gestões passadas em projetos e desapropriações, e renuncia a exercer um papel que cabe ao poder público, sem possibilidade de transferência ao setor privado.

Do ponto de vista simbólico, o Largo do Paiçandu acolhe a tradicional contribuição negra à cidade, por intermédio da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, inicialmente erguida na Praça Antônio Prado e transferida no início do século 20 para o Paiçandu. A segunda apropriação foi a da comunidade circense. Durante o decênio de 1920, ali se estabeleceu o Circo Alcebíades, que viu nascer Piolin, o maior talento de palhaço entre nós. A terceira foi a do cinema, iniciada com o Art Palácio, nos anos 1930, depois completada com o Olido e o cine Paissandu. Em seguida, o largo recebeu a arquitetura de ponta, com a construção do edifício Wilton Paes de Almeida, pioneiro na utilização da pele de vidro em arranha-céu. A última chegou com a cultura pop, que encontrou o endereço certo na icônica Galeria do Rock.

Por fim, mas não menos importante, a imensa demanda reprimida por moradia popular na cidade concentrou-se no Largo do Paiçandu em duas ocupações: a do conjunto Boticário, ainda hoje lá instalada, e a do edifício Wilton Paes de Almeida, interrompida tragicamente no incêndio que levou ao seu desabamento com vítimas.

Em suma, o programa da renovação do Largo do Paiçandu deve incluir moradia popular, celebração do circo, valorização da arquitetura, apelo ao cinema e promoção da cultura: música, dança, teatro, artes visuais.

A proposta da Prefeitura poderá atender a todas essas demandas com a construção da Escola de Circo Piolin, que inclui no seu conjunto um edifício de moradia popular para receber os moradores do local. O belo projeto dos arquitetos Cartum & Libeskind está pronto há anos. Uma vez implantado, com certeza se tornará um ícone da arquitetura da cidade.

O restauro do Art Palácio pelo arquiteto Paulo Bruna é outro projeto que foi desenvolvido na gestão Serra/Kassab e suspenso, assim como a Praça das Artes, até hoje inconclusa. O Art Palácio não tem mais função de cinema, e foi adaptado para ser teatro musical, já que possui fosso para pequena orquestra. As respectivas áreas – da escola de circo e do cinema – já foram desapropriadas.

O edifício da Galeria Olido terá de ser desapropriado para que lá se mantenham as atividades culturais existentes. A parte superior do edifício, que já abrigou as Secretarias de Cultura e de Obras, poderia receber uma das secretarias municipais que ainda não se mudaram para o Centro, ou mesmo empresas municipais que pagam caro pelo aluguel de suas instalações.

O edifício do Cine Marrocos, já desapropriado pela Prefeitura, pode perfeitamente passar por uma obra de retrofit visando a receber moradia popular, enquanto o térreo, onde se localizava o cinema tombado, hoje destruído, deveria ser adaptado para um teatro de música e dança, ligado à Praça das Artes.

A proposta de desapropriar o edifício “Independência”, situado na esquina da Ipiranga com a São João, não se sustenta. Muito mais relevante é o edifício do Cine Ipiranga, no outro lado da avenida, cuja arquitetura e mobiliário internos, desenhados por Rino Levi, continuam originais, graças a um tombamento do Conpresp. Ele é o único edifício em São Paulo que guarda a memória da experiência solene de ir ao cinema nos decênios de 1940 e 1950. Por esse motivo, merece ser desapropriado e restaurado para se transformar no Museu do Cinema, que atrairá turistas de todo o País. A parte superior do edifício, ocupada por um hotel, pode facilmente ser adaptada para uso residencial.

A nova administração estadual já declarou que pretende investir na renovação do Centro, dando continuidade às ações, iniciadas em gestões anteriores, com projetos já concluídos e em condições de rápida contratação de obras, que procuram valorizar o uso público de espaços referenciais dessa área. A própria Prefeitura aprovou recentemente um ambicioso projeto de intervenção no Centro expandido (PIU Centro) e realiza a revisão, complexa, do atual Plano Diretor. O Largo do Paiçandu pode ser a primeira materialização dessa parceria, entre duas instâncias do poder público: o municipal e o estadual.

Aliar valor simbólico com equipamentos culturais, oferta de moradia e renovação urbana com arquitetura de boa qualidade, Prefeitura com governo do Estado, para criar uma atmosfera acolhedora e respeitosa com a comunidade que habita o entorno, eis o caminho da valorização do Centro, que nós ainda chamamos de cidade.

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FOI SECRETÁRIO MUNICIPAL DE CULTURA (2005-2012)

Opinião por Carlos Augusto Calil