O artigo 114 da Constituição federal é claro. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho. Não há margem para divergência ou negação de sua competência. Contudo, tem sido infirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que em inúmeras reclamações tem cassado sentenças e acórdãos proferidos pelos órgãos da Justiça do Trabalho, ao fundamento de que violariam a jurisprudência do STF relativa à constitucionalidade da terceirização.
Terceirização e “pejotização” são fatos diferentes, porém em ambos os casos o que se vê é a tentativa de redução do custo Brasil relativo às contratações para a prestação de serviços. Num caso, o tomador dos serviços busca empresa que fornece mão de obra. Noutro, essa intermediação não existe e o contratante celebra contrato com pessoa jurídica (PJ) constituída pela pessoa física.
Até o advento da Lei da Terceirização e da reforma trabalhista (2017), o Tribunal Superior do Trabalho (TST) entendia que a terceirização era admitida apenas para as atividades-meio das empresas. Em relação à “pejotização”, ela nunca foi admitida quando a relação fática exprimia pessoalidade, subordinação, onerosidade, não eventualidade e alteridade (elementos da relação de emprego, segundo a CLT). O STF, em processos de controle de constitucionalidade (ADIs 3.961 e 5.625; ADCs 48 e 66 e ADPF 324), declarou ser constitucional a ampla terceirização, o que implicou ampla pejotização para reduzir custos via carteira de trabalho.
Por isso, a Justiça do Trabalho tem sido instada para examinar casuisticamente a validade e a regularidade da contratação por PJ e, uma vez convencendo-se da existência dos elementos da relação empregatícia, declara ter ocorrido fraude à lei trabalhista e condena o empregador ao recolhimento das verbas devidas.
Após o devido processo, as empresas têm ingressado com reclamações perante o STF alegando que a Justiça do Trabalho teria decidido contrariamente à jurisprudência da Suprema Corte, que, majoritariamente, tem admitido esses processos e realmente decretado a invalidade das decisões.
A nosso juízo, é a Justiça do Trabalho quem deve avaliar a prova da existência de relação trabalhista ou civil entre as partes, e não o STF, que, aliás, como gosta de afirmar, não reavalia fato(s) e/ou prova(s). Ressalte-se ainda que nem sempre as decisões da Justiça Trabalhista infringem a jurisprudência do STF. Isso porque o STF apenas admitiu constitucional que a terceirização ocorresse de forma ampla, tanto em relação às atividades-meio quando às atividades-fim, e essa foi a novidade, pois o TST tinha o entendimento de que a terceirização de atividade-fim era ilegal.
Portanto, nada se decidiu sobre a viabilidade de ampla “pejotização”, embora o entendimento tenha recebido elasticidade indevida para alcançá-la. Ao contrário disso, em um dos casos (ADI 5.625) o STF trouxe categórica ementa no sentido de que: “A higidez do contrato é condicionada à conformidade com os fatos, de modo que é nulo instrumento com elementos caracterizadores de relação de emprego”.
Não obstante a clareza da questão, a confusão está armada quando o assunto é terceirização, “pejotização” e reclamações trabalhistas. O último dos polêmicos casos apreciados é muito elucidativo a este respeito – Agravo Regimental na Reclamação n.º 67.348.
O ministro Alexandre de Moraes deixou clara a insatisfação com as reclamações que buscam reconhecer relação empregatícia quando o contrato se deu com pessoa jurídica. Disse que, talvez, a solução para o impasse seria a imposição judicial de recolhimento tributário do valor a ser recebido em razão das reclamações trabalhistas como ganhos de pessoas físicas. Conjecturou o ministro que isso faria com que o número de reclamações trabalhistas diminuísse ou, então, que a própria aceitação de contratação nesta modalidade se enfraquecesse, pois, em sua visão, o contratado aceita essa espécie de contratação, visto que também lhe é tributariamente vantajosa (recolhimento tributário como pessoa jurídica).
A essa reflexão respondeu o ministro Flávio Dino concordando com a existência de amplo jogo de conveniências em relação à “pejotização” e afirmando que, uma vez reconhecida a realidade da relação empregatícia, a fraude não se daria apenas em relação à legislação trabalhista, mas, também, contra o erário.
A despeito disso, é absolutamente possível, e até mesmo um dever do Fisco, realizar lançamento tributário do valor que entender correto, caso discorde do montante indicado na liquidação de sentença trabalhista. Logo, o argumento dos ministros do STF é mais um fundamento para manter as decisões da Justiça do Trabalho, que tem competência para analisar a presença dos elementos da relação empregatícia e, se for o caso, condenar o empregador ao pagamento das verbas devidas, que repercutirá na esfera da responsabilidade tributária das partes.
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ADVOGADOS, MARCELO FIGUEIREDO É TAMBÉM PROFESSOR ASSOCIADO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA PUC-SP