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Opinião | Transporte aéreo de cães de apoio emocional: uma análise jurídica e de segurança

Equiparar cães de apoio emocional a cães-guia ignora a complexidade e as implicações de segurança envolvidas

Por Camila Faria Gonçalves e Leonardo Fonseca Araújo

O transporte de cães de apoio emocional em voos comerciais é um tema de grande relevância, que envolve a compreensão de legislações e normas de segurança aérea, merecendo um debate aprofundado que transcenda simples considerações econômicas, abordando aspectos jurídicos, regulamentares e de segurança, a fim de garantir um equilíbrio adequado entre os direitos dos passageiros e a segurança de todos a bordo.

A Portaria n.º 12.307/2023 da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) autoriza as companhias aéreas a estabelecerem suas próprias regras e normas de segurança para decidirem sobre a aceitação ou não desses animais a bordo.

“Art. 3.º O transportador aéreo poderá ofertar o serviço de transporte de animal de estimação ou de assistência emocional na cabine de passageiros ou despachado no compartimento de bagagem e carga da aeronave, nos termos do contrato de transporte.

Parágrafo único: O disposto nesta portaria não se aplica aos animais despachados como carga nos termos da Resolução Anac n.º 139, de 9 de março de 2010.

Art. 4.º O transporte de animal na cabine de passageiros ou despachado no compartimento de bagagem e carga da aeronave deverá observar as regulamentações específicas de segurança operacional e de segurança da aviação civil contra atos de interferência ilícita emitidas pela Anac.

(...) Art. 7.º Mesmo nos casos em que é oferecido o serviço de que trata o art. 3.º, o transportador aéreo poderá restringir a quantidade ou negar o transporte de animal de estimação ou de assistência emocional por motivo de capacidade da aeronave, incompatibilidade com o espaço disponível na cabine da aeronave ou capacidade de atendimento da tripulação da cabine nas situações de emergência ou nos casos em que haja risco à segurança das operações aéreas.”

De acordo com a portaria, o transporte de animais por via aérea pode ser dividido em três categorias: animais que viajam junto com o dono na cabine, no porão da aeronave e animais de assistência emocional, de modo que cada empresa aérea estipula, em suas especificações operativas, se aceita ou não o transporte.

Assim, o transporte de animais em geral, incluindo os de suporte emocional, não é um direito assegurado ao passageiro, mas sim uma opção que fica a critério da companhia aérea. As razões para a recusa incluem: a limitação da capacidade da aeronave, a inadequação ao espaço disponível na cabine, a capacidade da tripulação para lidar com situações de emergência e o risco à segurança das operações aéreas.

No Brasil, as principais companhias aéreas oferecem o serviço de transporte de cães e gatos na cabine da aeronave, estabelecendo critérios específicos. Os requisitos incluem o tipo de animal (cão ou gato), a quantidade (um animal por cliente), a idade mínima (a partir de seis meses), a caixa de transporte (com medidas adequadas para caber abaixo do assento da frente, sem necessidade de pressionar) e o peso total do animal, incluindo a caixa de transporte (até 10 kg). Este serviço está disponível mediante pagamento pelo passageiro.

Além disso, as companhias aéreas oferecem o serviço de transporte de cães-guia, devidamente regulamentado pelo Decreto n.º 5.904, de 21 de setembro de 2006, e pela Resolução n.º 280/2013 da Anac. Cães-guia são essenciais para pessoas com deficiência visual e são treinados para realizar tarefas específicas que garantam a segurança e a autonomia de seus tutores. Esses animais são aceitos a bordo sem a necessidade de caixa de transporte e sem custo adicional.

Por outro lado, o transporte de cães de suporte emocional é oferecido por poucas companhias aéreas, principalmente por causa de preocupações com a segurança do voo. Diferentemente dos cães-guia, os cães de suporte emocional não são treinados para realizar tarefas específicas, mas sim para oferecer conforto e apoio emocional por meio de sua presença. Não há regulamentação específica nem treinamento exigido para esses cães, o que contribui para a hesitação das companhias aéreas em aceitá-los a bordo sem restrições.

Atualmente, existe uma crescente demanda de processos judiciais relacionados ao transporte de animais de assistência emocional. Contudo, é comum observar uma deturpação desse conceito, com muitos passageiros alegando necessidade emocional sem um diagnóstico genuíno, meramente para levar seus animais a bordo. Essa prática desrespeita as normas e os procedimentos estabelecidos pelas companhias aéreas, criando desafios adicionais para a gestão segura e eficiente do transporte aéreo.

No entanto, algumas decisões judiciais têm determinado que as companhias aéreas transportem cães de apoio emocional, equiparando-os aos cães-guia. Essas decisões judiciais desconsideram diferenças importantes, como o treinamento especializado, a legislação aplicável e os riscos associados. Equiparar cães de apoio emocional a cães-guia ignora a complexidade e as implicações de segurança envolvidas, subestimando a necessidade de normas claras e rigorosas para garantir a segurança de todos os passageiros a bordo.

O transporte de cães-guia (animal castrado, isento de agressividade, de qualquer sexo, de porte adequado, treinado com o fim exclusivo de guiar pessoas com deficiência visual) é regulamentado pelo Decreto n.º 5.904, de 21 de setembro de 2006, e pela Resolução n.º 280/2013 da Anac, indispensável para pessoas com deficiência visual e amparado pela Lei n.º 11.126/2005, que assegura sua livre circulação em locais públicos, incluindo aeronaves. Esses animais passam por um rigoroso treinamento, que pode durar até três anos e custa entre R$ 80 mil e R$ 100 mil, tornando-os altamente especializados para auxiliar seus tutores em ambientes complexos e movimentados. Além disso, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei n.º 13.146/2015) reforça esses direitos, destacando a importância da acessibilidade e do suporte adequado.

De acordo com a União Nacional de Usuários de Cão-Guia (UNUCG), atualmente existem 189 cães-guia em atividade no País, ou seja, animais que passaram pelo árduo treinamento para capacitá-los a exercer a função tão importante de prestar apoio a pessoas com necessidades especiais. Destaque-se que esse treinamento é realizado com cães de raças específicas, além de exigir um período de adaptação entre o tutor e o animal. Dessa forma, o cão-guia se torna uma extensão do corpo do tutor, como uma parte irremovível e necessária para a realização de atividades cotidianas, muitas vezes mantendo ou salvando a vida do tutor.

Em contraste a essa informação, com base no último índice divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as populações de cães e gatos são de 54 milhões e 24 milhões, respectivamente, incluindo aqueles que são designados como animais de suporte emocional. Essa disparidade numérica destaca a distinção entre cães-guia, que são treinados para desempenhar funções vitais, e animais de suporte emocional, que na maioria massiva das vezes não terá o mesmo nível de preparo e confiabilidade numa situação desconhecida para o cão. Enquanto os cães-guia são reconhecidos como parte funcional de seus tutores, os animais de suporte emocional são destinados a fornecer conforto emocional e apoio durante viagens aéreas, geralmente com base num atestado médico e em exames veterinários.

Neste último ponto, a discrepância é tão grande que tem sido reconhecida pelo Judiciário a equivalência entre uma certificação de conclusão de treinamento de cão-guia com atestados veterinários e exames sanitários mínimos, para fins de aplicação analógica da lei que regulamenta o acompanhamento de cão-guia.

Nesse aspecto, é preciso lembrar que a imprevisibilidade do comportamento desses animais de suporte emocional em situações estressantes, como uma turbulência, poderá resultar em acidentes com potencial de afetar tanto o bem-estar dos passageiros quanto a segurança do voo. Além da própria segurança do animal, que normalmente tem deferida judicialmente sua permanência livre dentro da cabine.

Somam-se aos riscos comportamentais as preocupações sanitárias e de conforto de todos. O confinamento numa cabine de avião pode exacerbar problemas sanitários, uma vez que animais não acostumados a voar podem se sentir desconfortáveis, o que pode levar a acidentes de higiene, afetando não apenas o bem-estar do animal, mas também o conforto dos demais passageiros.

A legislação vigente, ao determinar os requisitos que definem os cães-guia, baseia-se em critérios técnicos e na formação específica desses animais. Portanto, a equiparação errônea dos cães-guia com animais de suporte emocional feita por algumas decisões judiciais desconsidera a legislação específica e os altos custos envolvidos no treinamento de cães-guia, comprometendo a segurança a bordo.

Ademais, outro aspecto de enorme relevância na aplicação por analogia da legislação sobre cães-guia ressoa na possibilidade de estender essa analogia a todo e qualquer animal de suporte emocional. Isso permitiria o embarque em aeronave de qualquer tipo de animal que cumprisse a função de apoio emocional, nas mesmas condições de um cão-guia. O que levaria à conclusão de que qualquer animal, de qualquer espécie, poderia embarcar na aeronave junto com os passageiros, desde que considerados de apoio emocional. Por exemplo, uma iguana, uma serpente, roedores, uma vez que o critério para o embarque não seria técnico do ponto de vista de treinamento, mas sim emocional, o que, igualmente, não segue nenhum tipo de padrão objetivo.

Valendo-se de hipérbole para ressaltar a discrepância de exemplos, a interpretação feita por alguns juízes para aplicar por analogia a Lei n.º 11.126/2005 nada impede o deferimento do embarque de uma cabra ou de uma ovelha, desde que consideradas de suporte emocional, sob pena de se estar violando, por exemplo, o direito à igualdade, previsto no caput do art. 5.º da Constituição federal brasileira.

O critério psicoemocional que define a utilidade de determinado animal como de suporte emocional dificilmente será o mesmo para todos os animais que assumem essa característica e dificilmente haverá um padrão, como ocorre com os cães-guia, exatamente pela total subjetividade na análise da utilidade desse tipo de animal para seu dono.

Nesse ponto, outra diferença substancial afasta a possibilidade de aplicar por analogia a Lei n.º 11.126/2005 para os animais de suporte emocional. Os cães-guia existem para dar suporte exclusivamente a pessoas com deficiência visual e nenhum outro tipo de condição física. Por outro lado, animais de suporte emocional atendem a diversas outras condições, na maioria das vezes exclusivamente emocionais. Doenças como depressão, transtorno de ansiedade, transtorno bipolar, estresse pós-traumático e transtorno obsessivo-compulsivo igualmente podem ser tratadas com a utilização de animais de suporte emocional, mas também com a utilização de diversos outros tratamentos.

Ainda, mais relevante do que essa diferença na origem da condição que coloca uma pessoa no espectro da cegueira e a outra no da depressão, é o fato de que o cão-guia é a única solução para o deficiente visual, enquanto depressão, ansiedade e outros transtornos psicológicos são tratados com vários tipos de medicamento, além do tratamento com os respectivos profissionais da área da saúde mental.

O que se quer mostrar com esta explicação é que uma solução existe para atender a um tipo de situação e está totalmente regulamentada na legislação, enquanto a outra, além de não ter qualquer previsão legal, dispõe de um leque de soluções diferentes de tão somente o acompanhamento de um animal sem treinamento dentro da cabine de uma aeronave.

Com efeito, todos os argumentos apresentados confirmam um fato que não encontra nenhum contraponto capaz de lhe retirar a validade: não existe na literatura jurídica a possibilidade de comparar um cão-guia com qualquer animal de suporte emocional, visto que se trata de hipóteses totalmente diferentes.

Assim, analisando por outro ângulo, dados estatísticos elevariam a diferença aqui discutida a patamares extremamente maiores. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que no Brasil existem aproximadamente 500 mil pessoas cegas. No último Censo demográfico apresentado pelo IBGE, até 2022 a população brasileira tinha chegado a 203,1 milhões de pessoas. Fazendo uma simples conta, é possível dizer que apenas 0,24% da população brasileira é atingida pela cegueira total.

Por outro lado, levantamento feito por uma plataforma online voltada para a saúde mental apurou que 86% dos brasileiros sofrem com algum tipo de transtorno mental, como depressão ou ansiedade. Fazendo o mesmo comparativo populacional, 174.666.000 pessoas no Brasil sofrem de algum tipo de transtorno mental.

Somam-se a essas informações os dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde revelando que o Brasil é o país com maior número de pessoas ansiosas: 9,3% da população, ou, de acordo com os dados demográficos, 18.888.300 pessoas sofrem de ansiedade.

Além de o número de pessoas com cegueira total ser massivamente menor que o número de pessoas com transtornos mentais no Brasil (0,24% ante 86%), a quantidade de animais com treinamento para exercer a função de cão-guia coloca o número de deficientes que poderiam embarcar animais em viagens aéreas ainda menor: 0,036% da população de cegos no Brasil. Logo, não há qualquer dado estatístico ou precedente médico que possa comparar cães-guia com animais de suporte emocional, tornando necessária a discussão sobre a aplicação por analogia da Lei n.º 11.126/2005.

Portanto, um cenário de aplicação por analogia da Lei n.º 11.126/2005 para garantir o embarque de animais que servem de suporte emocional a pessoas com algum tipo de transtorno mental implicaria um desvirtuamento da lei, abrindo precedente para que a atividade de empresas de aviação fique totalmente prejudicada.

Com efeito, as companhias aéreas, ao exercerem seu direito de aceitar ou recusar cães de apoio emocional – novamente, direito esse garantido pela agência que regulamenta a atividade das companhias aéreas, bem como exposto claramente no contrato de transporte e sites da empresa –, devem priorizar a segurança de todos os passageiros e a conformidade com as normas da Anac. A implementação de políticas rigorosas, como a exigência de certificados de treinamento comportamental e a apresentação de documentação comprobatória de necessidade e treinamento, é essencial para mitigar os riscos que se corre num voo.

Diferentemente dos cães-guia, que têm proteção legal e treinamento especializado, os cães ou outros animais de apoio emocional apresentam riscos que não podem e não devem ser ignorados quando do tratamento da matéria. Companhias aéreas devem ter (como de fato têm) a prerrogativa de aceitar ou recusar esses animais com base em suas políticas internas e normas de segurança, sempre priorizando o bem-estar de todos os passageiros e da tripulação.

O Poder Judiciário, ao ser provocado a analisar esse cenário, deveria sopesar o que tem mais valor: o direito de uma pessoa com algum tipo de transtorno mental com base numa legislação que de maneira alguma pode ser aplicada por analogia ou o direito de diversas outras pessoas à segurança.

Dessa forma, entende-se que, com fundamento na análise proposta nesta oportunidade, não se pode vislumbrar qualquer cenário que permita a conclusão de que uma pessoa que tenha algum transtorno mental possa se valer da Lei n,º 11.126/2005, ainda que por analogia, para buscar o embarque numa aeronave de qualquer animal que não seja um cão-guia certificado.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, ADVOGADA GRADUADA PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL, MBA EXECUTIVO EM DIREITO GESTÃO E BUSINESS LAW PELA FGV, ESPECIALISTA EM PROCESSO CIVIL PELO MACKENZIE; E ADVOGADO GRADUADO PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL, É PÓS-GRADUADO EM DIREITO CIVIL PELA UNIDERP E EM DIREITO IMOBILIÁRIO PELO INSTITUTO SOLUS

Opinião por Camila Faria Gonçalves

Advogada graduada pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, MBA Executivo em Direito Gestão e Business Law pela FGV, é especialista em Processo Civil pelo Mackenzie

Leonardo Fonseca Araújo

Advogado graduado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, é pós-graduado em Direito Civil pela Uniderp e em Direito Imobiliário pelo Instituto Solus