Já passou da hora de falarmos sobre a relação entre poder público e big techs. E se você se interessa por inovação e tecnologia, recomendo que siga este pensamento. Antes, vamos pensar brevemente sobre a produção do conhecimento. Desde que a ciência passou a fazer parte do cotidiano, parte da nossa rotina tem sido guiada por ela. Do exame de saúde que fazemos à louça que lavamos, há ciência. Por trás de toda ferramenta, serviço, há pesquisa. E, tradicionalmente, o lugar onde mais se produz ciência é na universidade. Há muita pesquisa sendo desenvolvida em grandes conglomerados econômicos também. Mas todos esses pesquisadores, que trabalham para grandes empresas, aprenderam seus ofícios na universidade. Ou seja, a educação ainda é o principal produtor de conhecimento, ciência e inovação.
E o que isso tem a ver com as big techs? Ainda tomando como exemplo as universidades. Hoje, a maioria das instituições utiliza programas da Microsoft ou Google. Duas das maiores empresas de tecnologia. Ora. E qual o problema? Pois esse é o problema. Essas empresas, que detêm um oligopólio tecnológico, estão sorrateiramente cooptando dados, informação, conhecimento, não só da nossa vida particular, mas também da nossa vida em comunidade. Isso significa que grandes descobertas, pesquisas, estudos realizados em universidades e institutos de pesquisa estão sendo oferecidos de bandeja para grandes grupos que poderiam, inclusive, estar remunerando esses produtores de conhecimento. Pense em cada exame de imagem que um cidadão realiza. A corrida por diagnósticos automatizados depende da existência de bases de imagens médicas rotuladas. O Brasil até hoje não tem uma política especifica sobre isso. Há uma ausência total de políticas de preservação da informação original e de qualidade que o País possui. Isso inclui, por exemplo, o repasse dos sistemas de e-mail, videoconferências e armazenamento de documentos das universidades públicas gratuitamente para Google e Microsoft. Tudo ofertado gratuitamente para grandes conglomerados econômicos e tecnológicos. Você pode estar se questionando se realmente essas empresas se apropriariam de dados para criar produtos e/ou serviços que tragam ainda mais lucro para elas. Não há como afirmar, mas não é recomendável pagar pra ver.
E, nesse contexto, não há alternativa que não seja passar a olhar com mais atenção para o software livre. Movimento que prega a liberdade, a transparência e a replicabilidade, o software livre é a melhor alternativa para que órgãos públicos consigam garantir autonomia e, sobretudo, soberania. Significa que produzimos os dados e ficamos com os dados, de forma a garantir segurança para pesquisadores e, sobretudo, para os dados dos cidadãos. O Brasil já teve essa experiência de 2003 a 2008, e estima-se, segundo o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), que o País tenha economizado R$ 380 milhões nesse período. Ora, somente a economia já justificaria a alternativa. Mas mais que isso. Precisamos pensar em um país dono de seus processos, produtos, serviços, pesquisas, conhecimento.
Por meio do software livre é possível fornecer servidores web, sistemas operacionais, editores de texto, servidores de e-mail, gerenciadores de redes abertos e gratuitos. Na Universidade Federal do Paraná (UFPR), por exemplo, existe hoje um dos maiores espelhos de softwares livres do Brasil, sob gestão do Centro de Computação Científica e Software Livre (C3SL), grupo com experiência na área de mais de 20 anos. O grupo possui acesso à tecnologia de ponta gratuita, em que é possível oferecer uma formação equivalente à de qualquer país desenvolvido. A soberania nacional depende do acesso a essa tecnologia de ponta, mas principalmente de formação de pessoas capazes de operar e desenvolver essas tecnologias. Esse é o papel da universidade.
Entre as ditas barreiras para utilização do software livre estão a prática, o dia a dia das instituições. Pressupõe-se que é mais fácil e menos oneroso utilizar sistemas operacionais já conhecidos de todos. Essa é uma afirmação que não se sustenta. É possível oferecer treinamentos e, sobretudo, desestigmatizar o uso de softwares diferentes daqueles oferecidos pelas big techs. Basta vontade política. E mais que isso, basta valorizar a universidade como agente transformador desse processo. Nesse contexto que estamos falando de disputa diária de espaço, dados e informação, temos que ter voz ativa. Quando um reitor ou reitora de uma grande universidade americana se pronuncia sobre algum assunto estratégico, essa opinião tem impacto imediato na sociedade. No Brasil, as universidades são tímidas para opinar. De nada adianta sermos instituições que acumulam conhecimento se esse conhecimento não é repassado à sociedade.
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PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE INFORMÁTICA E PESQUISADOR DO CENTRO DE COMPUTAÇÃO CIENTÍFICA E SOFTWARE LIVRE (C3SL) DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ (UFPR)