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Opinião | Uma cela para Vladimir Putin?

Mandado de prisão é mensagem contundente de que as instituições internacionais continuam reagindo aos crimes e violações cometidos na Ucrânia

Por Lucas Carlos Lima

No Complexo de Detenção do Tribunal Penal Internacional (TPI), situado na praia de Scheveningen, em Haia, jaz vazia e solitária uma cela de paredes amareladas, cortinas e cobertas azul petróleo, ornada com móveis manufaturados num monótono tom de bege. A amplamente alardeada notícia de que um mandado de prisão internacional foi emitido pela Câmara de Prejulgamento do TPI parece oferecer, por ora, dois candidatos para sua ocupação: o sr. Vladimir Vladimirovich Putin, atual chefe de Estado da Federação Russa, e a sra. Maria Alekseyevna Lvova-Belova, comissária presidencial russa para os Direitos da Criança.

Como bem observou o procurador do TPI, o sr. Karin A. A. Khan, “existem motivos razoáveis para acreditar que o presidente Putin e a sra. Lvova-Belova têm responsabilidade criminal pela deportação ilegal e transferência de crianças ucranianas de áreas ocupadas da Ucrânia para a Federação Russa”. Os supostos crimes cometidos, quais sejam, os crimes de guerra envolvendo as crianças ucranianas, são os primeiros de uma provável série de atos envolvendo a situação da guerra na Ucrânia, internacionalmente reconhecida – inclusive pelo Brasil – como uma violação russa das regras mais básicas da comunidade internacional, constituindo uma agressão. Entre esses crimes estão a deportação de ao menos centenas de crianças retiradas de orfanatos e lares de acolhimento. As ações do Estado russo, por meio de decretos presidenciais emitidos pelo presidente Putin que facilitavam a adoção por famílias russas, seria o ato central que acarretaria sua responsabilidade. Embora os mandados por si sós sejam secretos, sobretudo para proteger, neste momento, a identidade das vítimas, a Câmara de Prejulgamento pontuou que “a conscientização pública dos mandados pode contribuir para a prevenção da prática de crimes”.

Neste momento, todos os Estados-membros do Estatuto de Roma – tratado que fez nascer o Tribunal Penal Internacional – devem cooperar para efetivar as prisões contra esses dois indivíduos de cidadania russa. Aciona-se uma importante rede de cooperação internacional criada para evitar a impunidade dos mais severos crimes internacionalmente reconhecidos.

As reações de autoridades russas ao mandado de prisão são reveladoras do incômodo gerado com essa notícia, pois o sinal enviado pelo tribunal é claro: inicia-se a busca internacional não apenas dos mandantes, mas também de todas as outras autoridades que possam estar envolvidas com a situação na Ucrânia. O Kremlin e políticos de importância como o ex-presidente Medvedev reprisam o tênue argumento de que a Federação Russa não aceita a jurisdição do TPI e, por consequência, os mandados e qualquer processo de investigação estariam além dos poderes do tribunal. O argumento rarefaz-se quando se considera que a Ucrânia é parte do Estatuto de Roma e, portanto, todos os crimes ocorridos em seu território são passíveis de serem investigados. Adiciona-se ainda o fato de que a situação na Ucrânia está há mais de um ano sob investigação e mais de 40 Estados da Europa, América, Ásia e Oceania denunciaram a situação ao tribunal.

A pergunta que permanece pairando diante do tribunal concerne a probabilidade de cumprimento dos mandados. No passado, mandados de prisão foram emitidos contra outros chefes de Estado, como, por exemplo, Muammar al-Gaddafi (Líbia), Omar al-Bashir (Sudão), Laurent Gbagbo (Costa do Marfim) e Jean-Pierre Bemba Gombo (República Democrática do Congo), bem como outros envolvidos nos regimes investigados. Se em alguns casos os mandados foram pouco efetivos, em outros eles aumentaram substancialmente a pressão internacional sobre os acusados, praticamente impedindo-os de saírem de seu país sem correr o risco de que um Estado membro do TPI efetuasse a prisão.

No caso de Vladimir Putin, no atual momento histórico, não se pode atribuir uma expectativa maior à decisão do que ela realmente representa. A chance de Vladimir Putin ocupar a cela amarelada na Holanda é muito pequena. Não se diminui, porém, o fato de que tal mandado é uma mensagem contundente de que as instituições internacionais continuam reagindo aos crimes e violações cometidos em território ucraniano. Aumenta-se também a pressão sobre outros colaboradores do regime, que deverão pensar duas vezes se desejam um mandado de prisão internacional contra si.

Por fim, a situação na Ucrânia reaviva o debate sobre a posição do Tribunal Penal Internacional e oferece reflexões sobre sua função na comunidade internacional. No passado, acusado de ter suas investigações voltadas predominantemente para o continente africano, o TPI parece demonstrar tanto que está à altura das expectativas que lhe são confiadas como também tenta afastar a criação de outros tribunais ad hoc que seriam estabelecidos para competir com sua jurisdição. No fim do dia, a lição enviada é de que crimes cometidos num território de Estado membro do TPI conta com a proteção adicional de um órgão judiciário internacional. O futuro e a legitimidade do Tribunal Penal Internacional em muito dependem do quão eficaz será a fim de prover uma cela a Vladimir Putin.

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PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, É COORDENADOR DO GRUPO DE PESQUISA EM CORTES E TRIBUNAIS INTERNACIONAIS CNPQ/UFMG. E-MAIL: LCLIMA@UFMG.BR

Opinião por Lucas Carlos Lima