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Opinião|Vamos mudar a lei do aborto, mas para melhor

Proteger uma pequena massa de células não faz sentido ético ou biológico. Também não faz sentido legalizar o aborto algumas semanas antes do nascimento

Por Fernando Reinach

A lei atual é injusta. O aborto é negado para a maioria das mulheres e, no caso de estupro, a demora no diagnóstico, e a recusa dos médicos, leva a gravidez para além das 30 semanas. Nesses casos, há a possibilidade de a criança ser viável fora do útero.

A legalização do aborto exige da sociedade uma decisão sobre como conciliar o direito de dois seres vivos. De um lado, o direito da mãe de decidir o que se passa em seu corpo. Do outro, o direito do embrião.

A mulher deve ter liberdade de decidir se deseja ter um filho. Por isso, a gravidez indesejada deve poder ser interrompida.

A gestação transforma uma única célula, menor que a ponta do alfinete, no recém-nascido. Se no início o embrião é um agrupamento de células, ele se desenvolve e, a partir de certo ponto, é capaz de sobreviver no caso de parto prematuro. Aí surge o dilema ético: o direito de sobrevivência do embrião (primeiros três meses) ou do feto (após três meses) pode se sobrepor ao direito da mãe?

A primeira célula após a fecundação tem o potencial de se tornar uma criança se estiver no útero da mãe, mas não significa que seja uma criança com os direitos do recém-nascido.

A maioria acredita que não há problema ético em interromper o processo logo no início. Mas, no fim da gestação, no útero há praticamente uma criança formada. Por isso poucos aceitam abortar pouco antes do parto.

Em maternidades bem equipadas, fetos que nascem após 26 semanas podem sobreviver. Dificilmente fetos de 20 a 22 semanas sobrevivem, mas o recorde é uma criança de 20 semanas.

Acredito que, ao longo da gestação, essa célula minúscula adquire gradualmente características que justificam seu direito de sobreviver. Por isso a maioria dos países onde o aborto é legalizado só o permite até 12 semanas, mas abrem exceções (estupro e razões médicas) que ampliam o prazo.

Acredito que, do ponto de vista legal, o aborto só deveria ser permitido na janela temporal em que o direito da mulher de decidir sobre seu corpo é preponderante sobre o direito do embrião de continuar seu desenvolvimento.

Para defensores radicais da ilegalidade do aborto, o direito do embrião começa no dia da fecundação. Já para defensores radicais do direito ao aborto, o direito à sobrevivência do feto só existe após o nascimento.

As duas posturas são insustentáveis. Proteger uma pequena massa de células não faz sentido ético ou biológico. Também não faz sentido legalizar o aborto algumas semanas antes do nascimento.

O desafio é definir até quando o aborto deve ser permitido.

A gestação pode ser dividida em três trimestres. No primeiro trimestre, o óvulo fecundado começa a se dividir.

Ao chegar no útero ele se fixa, e a placenta se forma. Um primórdio de cordão umbilical garante o alimento vindo da mãe. Esses tecidos, compostos por células do embrião, morrem após o parto (placenta e cordão umbilical).

No embrião, o número de células aumenta e elas se organizam nas regiões que darão origem a órgãos, como cérebro e aparelho digestivo. Mas nenhum dos órgãos já está formado e podemos dizer que eles ainda não funcionam.

O embrião tem cerca de 60 milímetros de diâmetro – a maior parte desse volume é ocupada pela placenta. É até esse momento que a maioria dos países permite o aborto.

Nos próximos três meses, o embrião já é denominado de feto, pois toma forma de criança. Os órgãos assumem a forma definitiva e começam a funcionar. Ao fim do período, o feto pode sobreviver fora do útero.

No terceiro trimestre (semana 26 a 39), há o crescimento rápido do feto e o fim da maturação, em preparação para nascer.

Essa descrição ilustra por que o embrião de 12 semanas ainda não é uma criança formada e por que esse é o limite aproximado em que o aborto é legalizado. E mostra por que fica mais difícil aceitar o aborto no segundo e terceiro trimestres.

Na minha opinião, na fase embrionária o direito de decidir da mãe claramente é superior ao direito do embrião. Mas, em algum ponto no segundo trimestre, é possível argumentar pelo inverso. No terceiro trimestre é razoável defender que já há o direito de sobreviver do feto. Não consigo aceitar que a vida de um feto de 38 semanas seja interrompida.

Minha opinião é que a lei deveria permitir a toda mulher abortar, sem qualquer questionamento sobre seus motivos, até o fim do primeiro trimestre (12 semanas). Menores de idade, vítimas de estupro ou não também deveriam ter o direito e a liberdade de abortar até 22 semanas, ou mesmo 26.

Abortos após essa data só poderiam ser feitos em casos excepcionais, por razões médicas. As penas por abortos além desses prazos deveriam ser guiadas pelas regras que punem condutas médicas proibidas. A liberação do aborto no Brasil deve agilizar o processo no caso de estupro de menores, permitindo o aborto mais cedo. E o mais importante: esta proposta estende o direito ao aborto a todas as mulheres. A lei do aborto precisa ser mudada sim, mas para melhor.

Veja aqui o que ocorre no embrião e no feto, dia a dia, durante a gestação:

https://embryology.med.unsw.edu.au/embryology/index.php/Timeline_human_development

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BIÓLOGO, PH.D. EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY, É AUTOR, ENTRE OUTROS, DE ‘A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL’

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, Ph.D. em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University, é autor, entre outros, de 'A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil'

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