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Opinião|Visão míope da lama

Há muito em comum entre o mar de lama e o mar de corrupção que inundaram o País

Por Érica Gorga

Miopia é a disfunção mais comum do olho humano, caracterizada por má visão a certa distância, que faz os objetos mais distantes serem vistos de modo desfocado, enquanto a visão de perto é normalmente preservada. É o caso do debate sobre o rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, da Vale, que espalhou 12,7 milhões de m3 de rejeitos tóxicos de minério em Brumadinho (MG) e na bacia hidrográfica do Rio Paraopeba e região. Críticos limitam-se a apontar falhas na legislação e regulação ambientais, olhando só o aspecto mais próximo da tragédia. 

Noticiou-se que após a ruptura da barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana, no fim de 2015, o maior desastre ambiental do País, a Vale - controladora da Samarco - obteve licença do Conselho Estadual de Política Ambiental e da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento de Minas, em dezembro, para ampliar a capacidade produtiva da mina Córrego do Feijão, beneficiando-se de alteração em deliberação normativa que reduziu exigências para intervenções de grande potencial poluidor. No pós-Mariana também fracassou a aprovação da lei de segurança de barragens que endureceria fiscalização e punição, a infratores na Assembleia de Minas Gerais (Estadão, 26/1).

Constatou-se que há apenas 35 fiscais na Agência Nacional de Mineração, órgão responsável por fiscalizar barragens de mineração, sem estrutura para garantir a segurança das mais de 20 mil barragens no País, 3.386 das quais consideradas de alto risco (Estado, 30/1). 

O fracasso da Vale é, então, atribuído às falhas do arcabouço regulatório ambiental nacional. Visto de perto, faz sentido, mas o diagnóstico é pura miopia. O caso da Vale, em análise sistêmica, é mais um a corroborar a falência da governança corporativa das grandes sociedades anônimas (S.As.) brasileiras, que envolve não apenas mineradoras e suas infrações ambientais, mas empresas dos mais variados setores. É o que mostraram os escândalos recentes da JBS, do ramo alimentício, da Petrobrás e da OGX, do petrolífero, da Odebrecht e das grandes empreiteiras do setor de infraestrutura, da Eletrobrás, etc.

Há muito em comum entre o mar de lama e o mar de corrupção que inundaram o País. Ambos são reflexos da falta de responsabilidade civil de administradores de empresas infratoras que, mesmo com a Lava Jato, continuam a manter fortunas pessoais, apesar de sua negligência, imperícia, imprudência e omissão, para não falar dos casos de evidente má-fé. De igual ou maior importância é a ausência praticamente absoluta de responsabilização dos “guardiães” do mercado (gatekeepers), que - como escrevi aqui em 11/5/18 - são profissionais que deveriam atuar de maneira independente para assegurar os padrões das atividades e condutas empresariais, mas no Brasil têm contribuído para toda sorte de desvios e ilícitos. 

A história dos laudos, por exemplo, se repete. A barragem da Vale contava com laudos de garantia de estabilidade assinados no ano passado pela Tüv Süd Brasil, empresa alemã, porém plenamente abrasileirada. Urge reconhecer que não é de hoje que laudos, auditorias e declarações, aqui, são frequentemente contaminados por erros, omissões e até fraude e corrupção. Não se pode descartar, sem investigação detalhada, diante da gravidade das consequências, a hipótese de os laudos não adotarem os melhores padrões técnicos de avaliação, como decidiu a juíza de Brumadinho.

É de conhecimento notório que relatórios de avaliação que fundamentaram operações de compra de refinarias, como a de Pasadena - agora vendida com US$ 638 milhões de prejuízo -, se revelaram “falhos”, assim como auditorias de demonstrações contábeis da Petrobrás, JBS e OGX e declarações de tais empresas ao público investidor. Diferentemente do que sucede com a responsabilidade dos guardiães em mercados sérios, o Brasil não pune - nem penal nem civilmente - auditores, contadores, engenheiros, advogados, bancos de investimento e demais guardiães infratores, na grande maioria dos casos. 

Criticou-se que o sistema regulatório atual ensejaria conflito de interesses, já que laudos e avaliações são produzidos pelas mineradoras e por auditorias contratadas, com base nos dados fornecidos pelas primeiras, de modo que são as próprias empresas interessadas que atestam a segurança de suas estruturas, em autorregulação definida pela Lei 12.334/2010. Ora, a autorregulação é largamente adotada como modelo por outros países mais avançados e há muito assimilada no nosso arcabouço empresarial. É a lógica do sistema jurídico de S.As. e dos prospectos de emissão e distribuição de valores mobiliários em que companhias põem à disposição do mercado informações sobre seus próprios negócios ao captarem quantias vultosas.

O problema não é a autorregulação em si, já que seria absolutamente inviável inchar a máquina pública a ponto de o número de fiscais quase equivaler ao número de barragens ou de emissões financeiras. O ponto é que políticas públicas de licenciamento com base em autodeclarações das próprias empresas, a exemplo do que ocorre no arcabouço americano, não funcionam sem um sistema rígido de responsabilidade (civil e penal, além da administrativa), no qual executivos de empresas e guardiães sejam responsabilizados, respectivamente, pelas declarações que assinam em nome das empresas e pelas avaliações que emitem como partes independentes.

Sem enxergar as falhas do arcabouço geral de governança das sociedades anônimas no País continuaremos míopes para conter a lama de todo o sistema, que, aliás, não é pouca.

*DOUTORA EM DIREITO PELA USP, COM PÓS-DOUTORAMENTO NA UNIVERSIDADE DO TEXAS, ÉRICA GORGA FOI PROFESSORA NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E VANDERBILT, DIRETORA DO CENTRO DE DIREITO EMPRESARIAL DA YALE LAW SCHOOL E PESQUISADORA EM STANFORD E YALE