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Opinião | Volta à ditadura pelo voto

Assusta que haja adeptos dessa ideia, ignorantes do que foi o regime militar

Por MIGUEL REALE JÚNIOR

A nefasta combinação de depressão econômica com a descoberta da corrupção que lavrou no País, atingindo as principais lideranças políticas, provoca, por desinformação, manifestações em favor da volta dos militares ao poder, dando apoio ao pré-candidato Jair Bolsonaro, entusiasta dos métodos da ditadura, com discurso agressivo em prol da repressão violenta. Todavia cabe, antes, recordar a situação política e econômica nos anos 1980.

Em agosto de 1983, Ulysses Guimarães, ao voltar de descanso e recuperação que fizera no interior de São Paulo, solicitou-me que, na condição de presidente interino da Fundação Pedroso Horta, do PMDB, organizasse manifestação em favor das eleições diretas e contra a desastrosa política econômica do governo Figueiredo. Tenho guardada a folha de bloco com o timbre da Câmara dos Deputados em que Ulysses, com sua letra de médico, anotou no que consistiria o ato. Deveria reunir 10 mil pessoas, tendo três temas: eleições diretas, moratória e desemprego.

Misturavam-se a reivindicação política por eleição direta com a análise – juntamente com economistas como Celso Furtado, João Manuel Cardoso de Mello, Luiz Gonzaga Belluzzo e José Serra – da trágica situação econômica que vitimava gravemente as classes média e baixa.

Em carta, assinada por Ulysses, presidente nacional do PMDB, Fernando Henrique Cardoso, presidente estadual, e por mim, lançava-se o movimento, Fala Brasil. Na carta, dirigida à militância do PMDB e a todas as lideranças da sociedade civil, convocava-se a participar de reunião em 1.º de outubro na Assembleia Legislativa de São Paulo, com o grito em prol das eleições diretas e de basta ao Decreto 2.045, ao desemprego, à recessão.

Na luta pelas eleições diretas abordava-se também a questão econômica, pois se vivia instante de profunda carestia, com inflação galopante e redução drástica do produto interno bruto (PIB). Com efeito, a inflação era desesperante, superara os 100% em 1981 e 1982. Naqueles meses, julho, agosto e setembro de 1983, a inflação atingira mais de 10% ao mês. O PIB fora negativo em 1981 (-4,3%), em 1982 fora positivo (0,8%) e negativo em 1983 (-2,9%).

Para complicar a situação dos trabalhadores, aprofundou-se a pobreza com os Decretos 2.012, 2.024 e 2.045, que impunham reajuste salarial menor do que a inflação, levando muitos brasileiros à miséria. O Decreto 2.045 de autoria do “neodemocrata” Delfim Netto, recente conselheiro de Lula, Dilma e do PT, estatuía ser a correção salarial tão só de 80% da variação semestral do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). Situação de penúria igual apenas se veria no segundo governo Dilma, gerador de recessão, da qual se começa a sair engatinhando.

Assim, a batalha em favor de eleições diretas não podia dissociar-se da discussão da crise econômica que atingia tantos brasileiros. A discussão e as propostas para a saída da crise enfrentavam um regime autoritário, com poucas opções para se criarem novos caminhos.

A ditadura vinha sendo enfrentada paulatinamente, com conquistas a cada passo, tendo já em 1983 passado o pior momento de forte repressão, cassações e tortura nos porões dos quartéis. Essa a ditadura a ser lembrada.

Como presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos por seis anos, constatei os horrores dos “anos de chumbo”, quando se prodigalizaram sevícias – choque elétrico, pau de arara, cadeira do dragão –, submetendo homens e mulheres à dor física, muitos morrendo nas mãos dos torturadores, sendo enterrados como indigentes ou se criando a farsa de combate nas ruas no qual teriam perecido.

Por isso assusta que ainda queiram voltar, pelo voto, à ditadura, ignorantes do que foi o regime militar, seja no campo das liberdades públicas, seja no âmbito da economia. Assusta ainda mais que o pré-candidato Bolsonaro arregimente adeptos quando suas ideias são manifestamente elogiosas à violência na política. No site congressoemfoco.uol.com.br colhem-se frases aterrorizadoras de sua autoria, com indicação dos veículos onde foram publicadas.

Chega o pré-candidato a justificar a tortura e a admitir sua adoção como meio de obtenção de prova ao afirmar: “O objetivo é fazer o cara abrir a boca. O cara tem que ser arrebentado para abrir o bico” – nada vendo de mal na sevícia covarde entre quatro paredes para forçar o prisioneiro a falar.

Na votação do impeachment de Dilma, Bolsonaro dedicou seu voto ao coronel Ustra, antigo chefe do DOI-Codi, centro de investigação dos crimes contra a segurança nacional, homenageando quem, por decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi responsabilizado por infligir tortura a vários presos políticos.

Espanta a indiferença à repressão como forma de governar, ao censurar a ditadura: “O erro da ditadura foi torturar e não matar”. Nessa linha de encômios ao assassinato na política, chegou a recriminar Pinochet, que “devia ter matado mais gente”. Para Bolsonaro, a ditadura foi condescendente, pois nesse período “deviam ter fuzilado uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique”.

Muitas frases suas, além de indicar o elogio à violência do Estado, mostram desprezo pela liberdade de ser diferente e pela igualdade entre homens e mulheres, a se ver pelas seguintes manifestações: “Seria incapaz de amar um filho homossexual” e “mulher deve ganhar salário menor porque engravida. Quando ela voltar (da licença-maternidade), vai ter mais um mês de férias, ou seja, trabalhou cinco meses em um ano”.

Sem olhar a dor alheia, estampou mensagem aos familiares dos desaparecidos, ansiosos por encontrarem seus despojos, ironizando: “Desaparecidos do Araguaia? Quem procura osso é cachorro”.

Em face a desse quadro, qual democrata pode aceitar candidatura presidencial alimentada por tais ideias? Seria a volta piorada da ditadura por via do voto.

*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA