Em meados de agosto deste ano, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), provocou uma hecatombe em Brasília ao suspender o pagamento das emendas parlamentares até que o Congresso e o governo do presidente Lula da Silva dessem transparência aos critérios de distribuição dos bilhões de reais sob essa rubrica orçamentária. Desde então, o Legislativo, o Executivo e, em boa medida, o próprio STF se lançaram em uma desabalada corrida para encontrar meios de fazer a dinheirama voltar a circular pelos gabinetes de deputados e senadores.
O resultado desse tour de force, como se sabe, foi a Lei Complementar (LC) 210, aprovada pelo Congresso e sancionada sem vetos pelo presidente da República no dia 26 de novembro. Supostamente, a LC 210 deveria prover os mecanismos de transparência exigidos por Dino em sua decisão liminar, que nada mais eram do que os requisitos já fixados pela própria Constituição. Até certo ponto, houve avanços, até porque seria impossível algo ser pior do que o breu absoluto que prevalecia na distribuição das emendas até então. Mas, malandramente, os gestores do “orçamento secreto” no Congresso deram um jeito de mudar as coisas na superfície para, no fundo, manter o controle sobre bilhões de reais em emendas ao abrigo do escrutínio público, mesmo com o advento do novo diploma legal.
Na terça-feira passada, Dino restabeleceu o pagamento das emendas, o que era esperado pelo Congresso e pelo governo federal desde a sanção da referida lei complementar. Porém, a decisão de Dino, referendada por sete de seus pares no STF em votação pelo plenário virtual no mesmo dia, decerto decepcionou os que pensaram ter feito o País e o STF de tolos, como ficou claro pela miríade de ressalvas feitas pelo ministro para que os recursos destinados às emendas, enfim, voltem a ser liberados. Como dizia Tancredo Neves, “a esperteza, quando é muita, come o dono”.
Sem verbalizar essa conclusão, Dino, na prática, disse ao Congresso e ao Palácio do Planalto que a LC 210 se revelou uma lei ruim, que não presta para dar à sociedade o devido conhecimento sobre o que seus representantes eleitos fazem com bilhões de reais em recursos públicos. Mais especificamente, R$ 186,3 bilhões apenas no período entre 2019 e 2024, além de inacreditáveis R$ 50,5 bilhões previstos no Orçamento da União de 2025 à disposição dos senhores parlamentares.
Está-se diante de uma obscena distorção institucional brasileira, que a LC 210 nem remotamente resolveu, muito ao contrário. Como bem enfatizou Dino, existem países presidencialistas, parlamentaristas, semipresidencialistas “e o Brasil, com um sistema de governo absolutamente singular no concerto das nações”. É como se o “orçamento secreto” tivesse criado um poder paralelo no País – à margem de quaisquer escrutínios republicanos –, exercido pela cúpula do Congresso, em concurso com os caciques partidários, para se assenhorear de um quinhão do Orçamento da União que só faz crescer, anomalia sem paralelo no mundo democrático.
Seria ingênuo esperar que da concertação de interesses entre o Congresso e o governo federal em torno da liberação das emendas adviesse uma lei capaz de moralizar essa orgia orçamentária que tomou conta do País. Mas o que se viu na aprovação da LC 210 foi além, uma tentativa canhestra de fingir que tudo mudaria na gestão das emendas parlamentares para, no fundo, manter tudo rigorosamente como sempre foi desde que o Congresso passou a se sentir soberano na disposição desses recursos bilionários.
Dino e seus pares no STF julgaram que a opacidade na gestão das emendas viola a Constituição, no que estão certos. Pode-se questionar, contudo, se é papel do STF “melhorar” uma lei que seguiu o trâmite legislativo regular, fixando critérios de transparência para a liberação de recursos que, por mais justos que sejam, não foram deliberados pelos congressistas. O fato é que o próprio Congresso fez letra morta da Constituição ao usar e abusar do direito de apresentar emendas ao Orçamento da União como se não devesse satisfação a ninguém.