A decisão do desembargador Antonio Ivan Athié, do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região (TRF-2), de conceder habeas corpus ao ex-presidente Michel Temer e a outros seis investigados, restaura o império da lei ante o arbítrio judicial. “Mesmo que se admita existirem indícios que podem incriminar os envolvidos, eles não servem para justificar prisão preventiva”, ponderou o desembargador Athié. A prisão preventiva não é instrumento para antecipar eventual pena a ser imputada no futuro. Ignorar os requisitos legais da prisão preventiva agride o Estado Democrático de Direito.
“Ao que se tem, até o momento, são suposições de fatos antigos”, resumiu o magistrado. E as hipóteses legais da prisão preventiva exigem fatos atuais. “Não cabe prisão preventiva para fatos antigos”, lembrou o desembargador Athié. “Não servem para fundamentar prisão preventiva (fatos) decorridos mais de quatro anos, em março de 2019”, diz a decisão.
“Além de (os indícios) serem antigos, não está demonstrado que os pacientes atentam contra a ordem pública, que estariam ocultando provas, que estariam embaraçando, ou tentando embaraçar eventual, e até agora inexistente instrução criminal, eis que nem ação penal há”, lembrou o relator do caso no TRF-2, listando cada uma das hipóteses legais para a prisão preventiva.
Ao decretar prisão preventiva sem fundamento legal, na prática o juiz Marcelo Bretas antecipou pena de uma eventual condenação que não se sabe se virá. O Ministério Público ainda nem propôs ação penal sobre os fatos alegados. Como disse o desembargador Athié, prisão antecipatória de possível pena é “absolutamente contrária às normas legais”.
Tamanha era a disposição de decretar a prisão dos investigados – e tão evidente a ausência dos requisitos legais – que o juiz Marcelo Bretas não se furtou a usar, em sua decisão, elementos de outras investigações, o que também contraria o bom Direito. “A decisão (de primeira instância) faz análise de depoimentos prestados em outros feitos”, apontou o desembargador. “A decisão faz mais considerações sobre outras investigações e afirma que há ‘evidências de que foi instaurada uma gigantesca organização criminosa em nosso país, cujo único propósito é recolher parte dos valores pagos em contratos públicos e dividi-los entre os participantes do esquema’”, afirmou o relator, desvelando a fragilidade das conclusões do juiz de primeira instância.
Ao tratar da ausência de contemporaneidade dos supostos fatos, o desembargador Athié é categórico ao afirmar que a conclusão a que chegou o juiz Marcelo Bretas sobre o caso não tem “a menor base empírica para justificar as prisões”. A clareza do diagnóstico do desembargador é de grande importância nos tempos atuais em que, muitas vezes, indícios são tratados como fatos e delações se convertem em verdades incontestáveis. A decisão deve respeitar a lei e a realidade, com uma análise rigorosa das circunstâncias do caso. Não há como falar em contemporaneidade dos fatos quando eles teriam ocorrido há quatro anos. O desembargador Athié lembrou também que Michel Temer e Moreira Franco já não mais ocupam cargos públicos, “sob os quais teriam sido praticados os ilícitos”, razão pela qual “o motivo principal da decisão atacada – cessar a atividade ilícita – simplesmente não existe”.
Ao longo da decisão liminar do TRF-2, fica evidente que a concessão do habeas corpus não representa nenhuma concessão à impunidade ou a um menor rigor investigativo. “Ninguém discorda da necessidade de apuração de todos os fatos, e de responsabilização dos autores, mediante devido processo legal, assegurados contraditório e ampla defesa”, lembrou o desembargador Athié, mas todas as investigações, “sem exceção, devem observar as garantias constitucionais e as leis, sob pena de não serem legitimadas”.
Num Estado Democrático de Direito, não pode haver espaço para o arbítrio judicial, seja qual for o motivo. Não há combate à corrupção com prisões ilegais – e é grande desserviço ao País e às instituições insinuar o contrário.