Na semana passada, aconteceu de novo. Um pequeno incidente veio mostrar, mais uma vez, que a cultura política e a cultura jurídica brasileiras ainda não compreendem bem a substância da liberdade de imprensa.
Desta vez, o episódio ocorreu no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF). O despacho em que o ministro Alexandre de Moraes solicitou a empresas jornalísticas que entregassem a íntegra dos áudios de entrevistas concedidas pelo senador Marcos do Val (Podemos-ES) tropeçou numa hesitação inicial reveladora, que deveria nos servir de alerta. Conforme noticiado amplamente, a primeira versão da ordem judicial estabelecia multa para quem não a cumprisse e – ainda mais preocupante – não deixava claro se o magistrado exigia a apresentação de todos os diálogos gravados com o senador ou apenas daqueles que tivessem sido efetivamente publicados pelos órgãos de imprensa. Em seguida, numa benfazeja correção de curso, as coisas se acertaram: além de retirar a previsão de multa, o ministro explicitou que estava se referindo apenas aos conteúdos, nos termos dele, “já publicizados”. Ficou melhor assim. Ficou direito, como deve ser.
Do Val, você sabe, é aquele que vem falando de propostas golpistas que teria ouvido do tal que era presidente da República até o ano passado. A denúncia precisa ser apurada, é lógico. O problema é que, em declarações dispersas e diversas, o parlamentar deu versões distintas das falas presidenciais que teria presenciado. Diante das inconsistências, o Supremo acerta em procurar reunir todos os pronunciamentos possíveis na tentativa de reconstituir a verdade factual. O esforço é necessário e bem-vindo.
Quanto a isso, é preciso registrar o mérito indiscutível do STF em conter as nefastas, embora “tabajáricas”, tentativas de golpe de Estado. Nesse trabalho institucional – que se mostrou decisivo para garantir a estabilidade da democracia –, o ministro Moraes ocupou e ocupa lugar de honra. Portanto, não vai aqui nenhum ataque à conduta dos membros do Supremo Tribunal Federal.
O episódio em questão, no entanto, descortina um problema de fundo: quando se trata de liberdade de imprensa, o poder, infelizmente, hesita, titubeia, deixando ver que desconhece o que deveria proteger com firmeza racional. São inúmeros os casos. Estão aí, frescas na memória, medidas de censura que tiveram de ser revertidas – ainda bem – a toque de caixa. Somos uma sociedade que não entendeu direito que a liberdade de imprensa é mais, muito mais, do que a simples liberdade de expressão.
Por certo, o jornalismo dá curso à livre circulação das ideias, que é um direito de todas as pessoas. Sim, a imprensa é uma forma especializada da liberdade de expressão. Mas sua substância é maior do que a mera liberdade de expressão. Para que se realize como prática social, a atividade jornalística requer direitos que não se resumem a manifestar ideias. Mais do que uma liberdade de dizer, é uma liberdade de fazer.
O ofício de repórteres e editores se define muito mais por aquilo que eles fazem do que por aquilo que eles enunciam ou propiciam que outros enunciem. Para começar, esses profissionais se reúnem todos os dias para criticar o poder. Depois, saem às ruas, entrevistam pessoas, consultam documentos, testemunham fatos e dirigem aos poderosos perguntas que os incomodam. Em suas tarefas cotidianas, exercem direitos que a democracia lhes assegura – e cumprem seu dever, que é essencial para a mesma democracia. Mais que um hábito, uma ética e um discurso, a imprensa é um método que inclui uma escola própria para fiscalizar o poder, para promover investigação independente e para moderar o debate público.
Essa liberdade de fazer inclui, não por acaso, o direito de não dizer. Quem edita uma publicação séria lida diariamente com uma grande quantidade de informações. Nem tudo é publicado. É verdade que, de vez em quando, lamentavelmente, alguma sandice escapa, o que gera noites de insônia para os profissionais, mas o método jornalístico tem sempre o ideal de desenvolver critérios para selecionar o que merece ser publicado. O que não é publicado permanece guardado em reserva. O direito de não publicar parte das informações é parte da liberdade de imprensa. Disso decorre que as autoridades não deveriam exigir que o jornalista conte para a polícia o que resolveu não publicar. Tal pretensão expõe a risco fundamentos basilares, como o do sigilo da fonte.
Conversas que repórteres mantiveram com suas fontes e resolveram não levar a público devem ser protegidas, não expostas pela Justiça. É claro que uma empresa, isoladamente e espontaneamente, pode resolver mostrar todos os seus arquivos para as autoridades que conduzem um inquérito. Decisões privadas autônomas não criam jurisprudência. Como regra geral, contudo, o juiz age bem quando se limita a conhecer o “já publicizado”. A liberdade de imprensa requer que o jornalista tenha o direito de não expressar o que não quer. No caso presente, para sorte do País, prevaleceu o bom senso democrático.
*
JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.