Hoje, dia 4 de janeiro, este matutino completa 150 anos de existência. A data sesquicentenária imprime um toque singular às festividades do réveillon, que ainda rumorejam no final de semana. Para alguns de nós, foi uma virada diferente, sem prejuízo da monotonia dos fogos de artifício, dos comensais em chinelas de dedo e das mensagens torrenciais no WhatsApp. Foi diferente porque, além de jurar mais empenho nos exercícios físicos e de torcer para que germine milagrosamente algum dinheiro no bolso de cada qual, eu e mais outras poucas pessoas mentalizamos votos de que a imprensa tenha futuro. Para acreditar que é possível, buscamos inspiração na história desta “folha diária” (expressão usada na primeira página da primeira edição, em 1875), que nasceu com o nome de A Província de São Paulo, ainda no período do Império, para defender os ideais republicanos. Sim, este diário nasceu contra o establishment – e, pouco depois de o Império cair, afastou-se do Partido Republicano. O jornalismo guarda distância do poder.
Penso nisso enquanto penso no que vem por aí. Serão tempos desafiadores. No mais, penso na infância – na minha. Em épocas natalinas, sentimentos nostálgicos nos alcançam. Com sua licença, sigo rumo ao passado – o meu e o da imprensa.
Vejo em flashback a sala da minha casa, com seu assoalho de tábua corrida, encerada e lustrada com escovão. Abaixo dos nossos pés, o porão vazio, raso, vedado pela madeira do piso que rangia sob os passos dos adultos. Fixado na parede, tínhamos um aparador feito de “pedra-mármore”, como dizia meu pai. Acima dele, subindo em direção ao teto, imperava o nosso imenso “espelho de cristal”, que não entortava a estampa das visitas. Aos quatro anos de idade, eu via essas coisas de baixo para cima. E era para elas que olhava quando, pela primeira vez, uma manchete de jornal feriu meu universo particular.
Devíamos estar perto da hora do almoço. Meu pai, de pé, com um ar apreensivo, segurava com as duas mãos o Estadão. Camisa branca para dentro da calça cinza, cinto marrom, ele ficou imóvel, olhando para o calhamaço, como se não respirasse. Depois, voltou-se para mim e me contou que o presidente dos Estados Unidos tinha sido assassinado. Eu não sabia nada de Estados Unidos, não sabia nada de nada, mas aquela notícia nunca mais me saiu da cabeça. O que me marcou não foi o fato, nem mesmo o relato, mas o efeito que ambos tiveram sobre a face do jovem advogado de bigodes finos, a quem todo mundo chamava de dr. Bruno.
Ainda não tínhamos televisão em casa. Meu pai cultivava o hábito de ouvir o noticiário no rádio durante o café da manhã. Naquele dia, porém, ele só soube da morte de John Kennedy pelo jornal de papel – foi o que deduzi, anos mais tarde, pensando na reação que ele teve na hora. Ele tomou um susto, tanto que eu nunca esqueci, mas tentou disfarçar.
Revejo agora, na tela do computador, a primeira página do Estado daquele sábado, 23 de novembro de 1963 (no domingo, seria meu aniversário de 5 anos). O assassinato de Kennedy monopolizou todas as linhas. Winston Churchill qualificou o crime de “monstruoso”. Nikita Kruchev, que estava na Ucrânia, retornou às pressas para Moscou, por “via férrea”.
Quase toda noite, o dr. Bruno lia o Estadão na mesa da copa – nunca na sala. Virava as páginas lentamente, num ritual metódico. Tinha apreço pelos “artigos de fundo”, admirava-os. Eu, quando o contemplava em seu rito noturno, entendia que ele era o dono da publicação. Sim, meu pai era o dono – e quem não sabe que o dono é o leitor jamais entenderá o sentido maior da palavra jornal.
Nos finais de semana, o dr. Bruno ia até o quintal, à sombra das jabuticabeiras, para mergulhar em seus “artigos de fundo”. Às vezes, meu tio Américo, pedreiro aposentado, aparecia por lá e pegava um dos cadernos para ler também. Estabanado, deixava as folhas amarfanhadas, fora de sequência, descompostas. Meu pai se afligia, mas não demonstrava. Depois que o irmão mais velho saía, recolocava os assuntos de volta em seu lugar devido, remontando os cadernos pacientemente, para depois alisá-los com as mãos como se quisesse apagar as cicatrizes da maçaroca. O jornalismo é afeição organizada.
Em 1976, o Estado lançou o Suplemento Cultural, para retomar a tradição do Suplemento Literário, que tinha deixado de circular uns anos antes. O dr. Bruno guardava as edições e mandava encaderná-las para me presentear. Tenho cinco volumes aqui comigo. O meu nome está nas capas, em letras douradas. O primeiro número do Suplemento, de 17 de outubro de 1976, tem artigos de Antonio Candido, Leyla Perrone-Moisés, José Goldemberg, Roque Spencer Maciel de Barros e Sérgio Viotti. No editorial, Nilo Scalzo escreve que, na imprensa, “tão importante quanto a liberdade de informação é a liberdade do exercício da crítica”. O jornalismo precisa de argúcia e sensibilidade.
Quando comecei a escrever “artigos de fundo” nestas páginas, meu pai ainda era vivo. Sinto saudade, mas não sinto dor. O Estadão é uma herança que ele me deixou. Feliz 2025.
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JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USP, É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS
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