Numa manhã frugal, tudo colapsa. Um petroleiro desgovernado avança contra a praia cheia de turistas e rasga a areia até estacionar, feito uma baleia encalhada. Aviões de carreira despencam do céu. Automóveis sem motorista, desses que andam sozinhos, desembestam ao mesmo tempo para um entroncamento de rodovias e causam um engavetamento monstro. A internet sai do ar. A TV sai do ar.
Assim começa o filme O Mundo Depois de Nós, da Netflix. Os Estados Unidos viraram alvo de um poderoso e inesperado ataque cibernético. Ato contínuo, a ordem social entra em parafuso. Vizinhos se olham como inimigos. Os laços que os uniam, que faziam deles um todo coeso e solidário, viram pó. O que era confiança se torna prevenção agressiva. Aterrorizados, sem conseguir se comunicar por telefone ou pelas redes sociais, os cidadãos ficam na iminência da guerra de todos contra todos. De um estalo, passarão a fazer o serviço iniciado pelos que desfecharam o ataque cibernético: agredindo-se uns aos outros, tratarão de destruir o país.
O enredo envolve e eletriza, mas está longe de ser o ponto mais interessante do filme. O que mais chama a atenção é a dupla de produtores: Barack Obama e sua mulher, Michelle. Essa dupla parece ter algo a nos dizer – e a forma pela qual nos diz é o entretenimento.
Dirigido por Sam Esmail, O Mundo Depois de Nós (Leave the World Behind) estreou em dezembro, alcançou o topo da lista dos mais assistidos da Netflix, e veio para anunciar que as teias digitais, com seus satélites, seus hubs e suas nuvens feitas de metais tóxicos serão o palco da mais destruidora de todas as guerras. China e Rússia já se protegem contra essa possibilidade catastrófica. O mundo democrático precisa abrir o olho.
Obama foi para Hollywood, a capital mundial da fantasia, porque pretende conversar a sério, sobre temas sérios, com multidões avessas a qualquer seriedade. Ele poderia escrever livros – o que, aliás, já fez –, mas prefere produzir atrações audiovisuais atordoantes. Para tocar o coração das massas, prefere lançar um thriller meio distópico (como O Mundo Depois de Nós) ou um “docudrama” um tanto sentimental (como Rustin, outra produção do casal).
Chega de filosofia. Chega de prosa acadêmica. O canal é a emoção. Será que ninguém vê? Só os Obamas? Agora mesmo estamos às voltas com as interpretações sobre o que se passou em Brasília no dia 8 de janeiro do ano passado, e quase não se fala de emoção. Sem dúvida, a depredação da capital federal cumpriu à risca o roteiro de uma tentativa de golpe de Estado, embora os arruaceiros não saibam até hoje o significado da palavra “Estado” e não entendam as implicações multívocas da palavra “golpe”. O que houve foi mesmo um empastelamento contra o Estado Democrático de Direito, mas o problema mais difícil não está aí. O ponto mais intrigante do 8 de janeiro de 2023 no Brasil (que está para o 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos como as chanchadas da Atlântida estavam para as superproduções de Hollywood) é que a turba fez o que fez não por estratégia, mas por prazer e gozo.
“Isto aqui é melhor que um show de rock”, escreveu um dos participantes nas mensagens que postou no celular, embriagado de vaidade supostamente patriótica. A droga pesada que transforma idiotas em autoproclamados “patriotas” é o fanatismo sintetizado nos laboratórios de manipulação digital. As massas se deixaram viciar em sentimentos vibrantes, em sensações alucinantes, e rejeitam o que lhes exija o esforço de pensar.
A seu modo, o casal Obama entendeu que a formação da chamada “vontade política” se desviou para o divertimento comercial. Nesse desvio, o termo “vontade” perdeu terreno para o termo “desejo”: a vontade tem parte com a razão; o desejo não paga pedágio nenhum para o pensamento, apenas avança o sinal com tudo o que tem de visceral e de fútil. O 8 de Janeiro envolveu menos inocentes úteis do que indecentes fúteis. Espatifar relíquias históricas no Palácio do Planalto deu sentido heroico a vidas vazias – isso não no plano da História, com H maiúsculo, mas na tela do entretenimento, inteiramente minúsculo. As forças que movem o povo não são práticas nem programáticas – são melodramáticas.
Por isso Obama vai a Hollywood. Para onde mais iria? Ao fundar com sua mulher a produtora de cinema Higher Ground, ele inverteu a mão de uma estrada que parecia ter sentido único. Antes, os astros do show business pegavam essa estrada para se alojar no poder do Estado (Ronald Reagan, Arnold Schwarzenegger e Donald Trump que o digam). Agora, há um movimento na direção contrária: um ex-inquilino da Casa Branca inicia uma carreira de investidor no show business. Vale acompanhar.
No ano passado, o ex-presidente faturou um Emmy como narrador numa série documental sobre parques naturais. Falando na primeira pessoa, comentando a saga cruenta dos predadores, os encantos pálidos das plantas, a imponência de penhascos vertiginosos e a imperturbabilidade das cordilheiras, ele ganha dinheiro, amealha reconhecimento e, misteriosamente, faz política – ou o que resta da política.
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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP
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