Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Europa se aproxima da hora da verdade

A Alemanha deu um passo importante para financiar a defesa. Mas o futuro da Europa dependerá da capacidade de concertar uma grande estratégia entre segurança, governança e economia

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
2 min de leitura

Em 23 de fevereiro, quando Friedrich Merz venceu as eleições para governar a Alemanha, os EUA, o principal aliado da Europa desde a 2.ª Guerra, já era visto como um parceiro pouco confiável. Em questão de semanas, tornou-se um potencial adversário. O presidente dos EUA, Donald Trump, está cortejando a Rússia, hoje a principal inimiga da Europa, e culpou a Ucrânia pela guerra, alijou os europeus das mesas de negociação, prestigiou partidos radicais do continente, ameaça a economia com uma bateria de tarifas e reivindica territórios soberanos como a Groenlândia. Em seu primeiro discurso após as eleições, Merz declarou que sua “prioridade absoluta” seria “fortalecer a Europa o mais rápido possível” e “conquistar a independência em relação aos EUA”. Agora ele está mostrando quanto leva a sério essa missão.

Mesmo antes de formar o novo governo, o líder da democracia cristã concertou com seus prováveis parceiros no governo, os social-democratas, além dos verdes, a aprovação de mudanças constitucionais que deslocam o eixo geopolítico alemão. Revertendo décadas de ortodoxia fiscal, o pacote aprovado pelo Bundestag (Parlamento) franqueará ao governo capacidades ilimitadas de emprestar dinheiro para defesa, além de criar um fundo de 500 bilhões de euros para investimentos em infraestrutura por 12 anos. “Essa decisão que estamos tomando hoje sobre a prontidão da defesa de nosso país”, disse Merz, “é nada menos que o primeiro grande passo para uma nova comunidade de defesa europeia”.

É um grande passo. Mas, após décadas de complacência sob o guarda-chuva militar dos EUA, a Europa não só precisa reaprender a caminhar com as próprias pernas, mas encontrar o caminho mais curto para a sua autonomia – e tudo isso o mais rápido possível. Enquanto a aliança transatlântica desmorona a olhos vistos e a Rússia acelera sua economia de guerra, o drama da Europa é que ela precisa enfrentar uma ameaça existencial externa ao mesmo tempo em que precisa solucionar uma crise existencial interna.

Mais gastos com defesa são uma condição sine qua non para a sobrevivência da Europa, e o pacote alemão reconhece essa urgência. Mas décadas de prudência fiscal garantiram ao país a latitude para se endividar que será útil agora. Não é assim para outros países, que precisarão fazer sacrifícios em outras áreas. E a médio e longo prazo, a sustentabilidade desses gastos dependerá de mais receitas fiscais, que dependerão de mais crescimento e produtividade.

Há outros desafios interdependentes ao financiamento no âmbito militar, político e cultural. Na hipótese de os europeus precisarem enviar tropas para a Ucrânia, não se sabe quantos soldados cada país enviará nem como os países europeus construirão um guarda-chuva nuclear para substituir o americano. Não há consenso sobre esses e outros compromissos de defesa.

A Europa precisará concertar uma estratégia ampla e coerente interligando segurança, economia e governança com as ferramentas de uma política notoriamente fragmentada. Para agravar a situação, esse modelo está sob forte ameaça de partidos extremistas apoiados por Trump e de interferências do Kremlin. E a Europa precisa rapidamente revitalizar a sua economia e recuperar a competitividade. Seus líderes precisarão fazer escolhas difíceis e convencer seus eleitores a fazer sacrifícios incontornáveis, por exemplo sobre benefícios sociais.

Há muitas oportunidades, mas muitas incertezas. A União Europeia e o Reino Unido conseguirão estreitar novamente seus laços após o Brexit? A Europa conseguirá negociar salvaguardas dos EUA enquanto ergue sua estrutura de defesa? Em que termos reconfigurará sua relação com a China? Como desenvolverá novos laços com a África ou a América Latina?

Não se trata de ser pessimista. Os países europeus já se reergueram de grandes choques geopolíticos antes, emergindo mais coesos, como no fim da 2.ª Guerra ou da guerra fria. Mas os europeus tampouco podem se dar ao luxo de serem otimistas. Trump despertou o continente de seu sono geoestratégico. Mas agora virá a parte dura, levantar da cama e ganhar o dia. A Europa tem recursos e potencialidades para isso, mas ela e o mundo estão para descobrir se terá a determinação política.