O governo apresentou um déficit de R$ 230,5 bilhões ou 2,1% do PIB em 2023. O resultado inclui o pagamento dos precatórios extras, de R$ 92,4 bilhões, após o Supremo Tribunal Federal (STF) declarar inconstitucional o teto anual inventado há alguns anos. Por outro lado, o governo conseguiu aprovar uma nova regra fiscal e uma série de medidas para elevar a arrecadação. Os números de 2023 ensejam uma discussão de maior fôlego sobre os desafios para melhorar as contas do País.
As despesas primárias federais (sem contar os juros da dívida) passaram de 18% para 19,6% do PIB entre 2022 e 2023. O Bolsa Família subiu 0,7 ponto porcentual (p.p.); os precatórios de custeio e capital, 0,5 p.p.; os benefícios previdenciários, 0,4 p.p.; as despesas discricionárias, 0,2 p.p.; o apoio financeiro aos Estados e municípios, 0,1 p.p.; e o benefício de prestação continuada, 0,1 p.p.. Outros efeitos redundaram em queda de 0,4 p.p., explicando, assim, a alta de 1,6 p.p. do PIB no gasto total.
Do lado das receitas, já excluídas as transferências aos governos regionais, a arrecadação líquida passou de 18,4% para 17,5% do PIB, entre 2022 e 2023, retornando ao nível observado em 2021. Na década anterior à crise pandêmica (2010 a 2019), a receita líquida média anual ficara em 18,2% do PIB.
Na abertura das receitas, destaco a queda de 0,4 p.p. do PIB na receita de concessões e de 0,7 p.p. na arrecadação com dividendos pagos por estatais e nas receitas de exploração de recursos naturais, em razão das oscilações nos preços do petróleo. As receitas mais ligadas à atividade econômica apresentaram queda de 0,5 p.p. do PIB e as receitas do INSS subiram 0,1 p.p., por sua vez, sob influência do bom desempenho do mercado de trabalho. Outra ajuda, já no final do ano, adveio dos novos fluxos da tributação dos fundos fechados (0,4 p.p. do PIB anualizado).
Aliás, o ministro Fernando Haddad tem se empenhado na aprovação de medidas para eliminar benesses tributárias. Exemplos: a regulamentação das subvenções baseadas nos incentivos fiscais do ICMS; a tributação dos fundos fechados e dos investimentos e ativos fora do País (“offshore”); o tratamento adequado da chamada “tese do século”, obrigando à contabilização dos créditos de ICMS na hora de retirar o tributo da base do PIS e da Cofins; e a nova lei do Carf. A questão da desoneração da folha enquadra-se no mesmo rol.
O ponto de partida é bom, dada a aprovação da Lei Complementar n.º 200/2023, mais conhecida como novo arcabouço fiscal. Contudo, o problema fiscal é mais intrincado e tem duas cabeças. Uma, de curtíssimo prazo, mais relacionada a desarmar as bombas fiscais em constante gestação no Congresso e a evitar a contratação de novas despesas ou renúncias tributárias. Outra, mais complexa, relacionada a melhorar a qualidade do gasto e restabelecer os instrumentos de planejamento e de gestão. O Executivo tem de retomar a capacidade de comando e controle sobre o Orçamento.
No eixo de curtíssimo prazo, há ao menos quatro pontos de atenção: a) os impactos da nova regra do salário mínimo sobre a Previdência; b) o avanço descomunal do gasto tributário (já na casa de meio trilhão de reais); c) os efeitos dos novos concursos e reajustes salariais sobre o gasto com pessoal; e d) o tamanho e a forma das despesas discricionárias, dada a “nova” dinâmica das emendas parlamentares.
Os itens “a” e “c” devem ser monitorados. Não há muito a fazer, a não ser evitar alterações e novas medidas com impacto fiscal relevante. No item “b”, é preciso continuar na toada atual, mesmo com os esperneios dos setores afetados. Não é razoável que a sociedade sustente meio trilhão de gastos tributários, enquanto a dívida/PIB aumenta a olhos vistos.
Haddad está correto de colocar o dedo nessa ferida. Pode-se retomar a boa ideia da Emenda 109, aliás, segundo a qual já deveríamos estar praticando um programa de redução de gastos tributários. Uma iniciativa tempestiva do ex-ministro Paulo Guedes, registre-se. Infelizmente, o Congresso não fez sua parte e engavetou a proposta do Executivo baseada na tal emenda.
No item “d”, cabe reverter a expansão desmedida das emendas parlamentares, que, mesmo após a tesourada do presidente Lula da Silva para 2024, estão orçadas em R$ 47,4 bilhões, enquanto o programa inteiro de investimentos, o “Novo PAC”, totaliza R$ 54,5 bilhões. É preciso que se discuta, ainda, o fim da “impositividade” das emendas individuais e de bancada, bem como a modalidade “transferência especial”, a chamada “emenda Pix”, que impede o acompanhamento dos caminhos do dinheiro.
Esse quarto item das tarefas imediatas está ligado à segunda agenda. A Lei de Finanças Públicas, de 1964, tem de ser revista; o Plano Plurianual, conhecido como PPA, idem; a avaliação de políticas públicas deve ser incorporada ao processo orçamentário; e as obras de infraestrutura prioritárias, bem como o seu financiamento, têm de ganhar espaço no debate anual da política fiscal. Nesse último ponto, será fundamental contar com o Parlamento e os Estados.
Desarmar as bombas fiscais e aumentar as receitas são tarefas mais imediatas na seara fiscal. Já as outras ações para melhorar as contas públicas demandam, na verdade, uma escolha de futuro que ainda está em aberto.
*
ECONOMISTA-CHEFE E SÓCIO DA WARREN INVESTIMENTOS, FOI SECRETÁRIO DA FAZENDA E PLANEJAMENTO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.