O PIX foi uma boa inovação do Banco Central, ao baratear e facilitar as transações financeiras. Mas há outro PIX, este bastante perigoso, gestado e parido pelo Congresso. Trata-se das emendas parlamentares na modalidade “transferência especial”. Sem lenço e sem documento, recursos públicos voam de Brasília para os municípios sem transparência.
Em 2015, por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 61, propôs-se a novidade. O objetivo? Permitir repasses diretos aos municípios e Estados, como se fossem adicionais aos Fundo de Participação. Só que estes são uma maneira de partilhar os recursos que pertencem, pela letra da Constituição, a todos os entes federados. Trata-se do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados. Isso nada tem a ver com as emendas, cuja fonte é dinheiro da União. E só dela.
As emendas parlamentares, em geral, destinam-se a projetos específicos, passando pelo escrutínio dos órgãos de controle. É preciso convênio ou compromisso mínimo para liberação dos recursos pelo Tesouro. Por exemplo, um dinheiro destinado por meio de emenda parlamentar individual a despesas de custeio de uma Santa Casa não é liberado automaticamente. A ordem bancária só é emitida após a contrapartida concreta.
O mesmo ocorre com a verba destinada à reforma de um hospital, ao recapeamento asfáltico ou a qualquer projeto. Aliás, muitas vezes, existe orçamento disponível para determinada finalidade, mas o dinheiro acaba represado. É o que se convencionou chamar de “empoçamento”. Não se gasta por pura incompetência. Esta derivada da falta de planejamento ou da incapacidade de apresentação de um mero projeto.
Ocorre que, em 2015, a PEC n.º 61 resolveu tornar mais livre a aplicação dos recursos destinados a Estados e municípios por meio de emendas. Os proponentes da PEC escreveram, a título de justificação: “A presente proposição visa a possibilitar que as emendas individuais apresentadas ao projeto de lei orçamentária anual possam aportar recursos diretamente ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e ao Fundo de Participação dos Municípios”.
O texto ainda fala em “agilidade”, “redução de burocracia” e criação da “faculdade (aos parlamentares) de destinar os valores” como bem entendessem (acrescento eu). Também afirmavam que “evitar-se-ia, com isso, que os entes federativos tivessem de apresentar projetos, que a União tenha (sic) de analisar os mesmos projetos e celebrar convênios, os quais precisam ser fiscalizados (...)”. Ora, mas é justamente o que não se deveria jamais evitar!
A justificação da PEC seguia assim: “Tal iniciativa tem como objetivo aprimorar e desburocratizar a execução das emendas parlamentares e, além disso, sanar as dificuldades fiscais que vem (sic) sendo observadas já há vários anos na relação entre a Caixa Econômica Federal e o Tesouro Nacional (...)”.
Não ignorando que havia, sim, legisladores bem-intencionados entre os proponentes, a verdade é que foi uma péssima ideia. As emendas PIX representam uma destinação arbitrária de recursos federais sem qualquer critério técnico, social e/ou econômico. É temerário tratar assim um pedaço importante do Orçamento. Vamos ler o que diz parte da Emenda n.º 105, promulgada em 2019, a partir da PEC n.º 61:
“Art. 166-A. As emendas individuais impositivas apresentadas ao projeto de lei orçamentária anual poderão alocar recursos a Estados, ao Distrito Federal e a municípios por meio de:
I – transferência especial (...)
§ 2.º Na transferência especial a que se refere o inciso I do caput deste artigo, os recursos:
I – serão repassados diretamente ao ente federado beneficiado, independentemente de celebração de convênio ou de instrumento congênere;
II – pertencerão ao ente federado no ato da efetiva transferência financeira; e
III – serão aplicadas em programações finalísticas das áreas de competência do Poder Executivo do ente federado beneficiado (...)
§ 5.º Pelo menos 70% (setenta por cento) das transferências especiais de que trata o inciso I do caput deste artigo deverão ser aplicadas em despesas de capital (...)”.
Essa inovação reduziu a transparência e, provavelmente, aumentou a ineficiência na distribuição dos recursos do Orçamento público federal. O sistema Siga-Brasil, do Senado Federal, permite avaliar o montante de emendas parlamentares na modalidade “transferência especial” (ou PIX) em 2024.
Do total de R$ 25,1 bilhões em emendas individuais, R$ 8,2 bilhões estão classificados na modalidade PIX para este ano. É possível consultar os autores, seus valores individuais e o Estado ou município de destino. Mas é impossível saber a área ou política pública para a qual o recurso federal seguirá.
Em 2020, 2021, 2022 e 2023, respectivamente, foram destinados, via emendas PIX: R$ 621,2 milhões; R$ 2,0 bilhões; R$ 1,7 bilhão; e R$ 8,8 bilhões (destes, R$ 1,7 bilhão carregados de 2022), conforme minha consulta ao Siga-Brasil.
É preciso acabar com as emendas PIX e determinar uma auditoria pelo TCU. O artigo 83 da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024 tentou fechar o cerco, ao exigir prestação de contas e plano de execução de gastos. Mero paliativo. O mal precisa ser cortado pela raiz, eliminando-se da Constituição Cidadã essa sandice orçamentária.
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ECONOMISTA-CHEFE E SÓCIO DA WARREN INVESTIMENTOS, FOI SECRETÁRIO DA FAZENDA E PLANEJAMENTO DO ESTADO DE SÃO PAULO
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