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Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos, professor do IDP, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e o primeiro diretor executivo da IFI. Felipe Scudeler Salto escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Teto de gastos 2.0

Regras fiscais do Brasil estão mal calibradas, pois falta ancoragem a um cenário de dívida traçado a partir de estimativas técnicas.

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O teto de gastos foi uma inovação importante no arcabouço das chamadas regras fiscais, normas para tutelar as contas públicas. A maior parte dos economistas, hoje, defende algum tipo de controle sobre o gasto, mesmo que seja diferente da versão de 2016, maculada para sempre por três emendas à Constituição em 2021. A ideia de um teto 2.0 pode ajudar neste debate.

Luc Eyraud, Xavier Debrun e coautores publicaram, em 2018, um estudo valioso sobre regras fiscais (Second-Generation Fiscal Rules: Balancing Simplicity, Flexibility, and Enforceability). Em geral, eles mostram que essas normas estão correlacionadas com níveis de endividamento e déficits (receitas menos despesas) mais modestos.

Contudo, a “heterogeneidade” entre os países é grande. Muitas vezes, a média engana. Se os braços estão dentro do congelador e as pernas na sauna, a temperatura média do corpo estará razoável. Isso os levou a explorar as condições a garantir regras efetivas e a estudar as especificidades. Destaco uma conclusão do trabalho: as normas precisam estar ancoradas a um objetivo claro, como a sustentabilidade da dívida pública.

O Brasil tem múltiplas regras em vigor. Metas legais para o resultado primário (receitas menos despesas, sem contar os juros da dívida); teto para os gastos públicos; regra de ouro (é proibido fazer dívida para pagar gastos correntes); limites para a dívida pública (no caso da União, não regulamentado, apesar de reiterado pela Emenda 109, de 2021); limites para a despesa com pessoal; regras de acionamento de medidas de ajuste fiscal baseadas na proporção de gastos obrigatórios; e por aí vai.

Apesar disso, a situação das contas públicas continua ruim. Dívida pública elevada, com investimentos públicos menores a cada ano. Sistema tributário gerador de desigualdades com carga elevada.

Por onde começar?

As regras fiscais brasileiras estão mal calibradas, porque falta uma ancoragem a um cenário de dívida pública traçado a partir de estimativas técnicas. Como fixar uma meta de resultado primário de R$ 50 bilhões, R$ 150 bilhões ou R$ 250 bilhões, se não se sabe qual a dívida aceitável, dadas as condições de crescimento econômico, juros e inflação? Como dizer que o gasto só pode crescer pela inflação, sem evidenciar como esse esforço fiscal colaborará para a sustentabilidade ou a redução da dívida em relação ao PIB?

Pessoalmente, parece-me que um caminho interessante passa pela seguinte formulação: a meta de resultado primário deve ser fixada no valor necessário para estabilizar a dívida bruta em relação ao PIB num horizonte de médio prazo. Isso é diferente de simplesmente limitar a dívida. Explico o porquê.

A dívida está na casa de 80% do PIB e deverá encerrar os próximos anos acima disso. Se o PIB voltar a crescer 2,5%, em 2023-2024, com taxas reais de juros de 4% ao ano, seria possível estabilizar uma dívida de 84%, digamos, com um superávit primário de cerca de 1,5% do PIB.

Para isso, então, o déficit de 2022, na casa de 0,7% do PIB, teria de melhorar 2,2 pontos porcentuais do PIB para virar superávit de 1,5%. Isto é, as metas de superávit primário para 2023 e 2024, sob uma hipótese de ajuste linear, deveriam ser de 0,4% e de 1,5% do PIB, partindo de déficit de 0,7% em 2022. Estamos falando, aqui, de um ajuste acumulado, por meio do aumento da receita ou do corte de gasto, em torno de R$ 250 bilhões. Se o objetivo for, em seguida, reduzir a razão dívida/PIB, o esforço requerido aumentará.

A regra mais diretamente ligada à sustentabilidade da dívida é a meta de resultado. O teto, por sua vez, está ligado ao tamanho do Estado. Assim, a nova regra de gastos poderia ser definida da seguinte maneira: a despesa estará limitada pelo esforço primário fixado na Lei de Diretrizes Orçamentárias, dadas as projeções de receitas.

Vamo-nos entender: as receitas estimadas (técnica e independentemente), sob premissas realistas de aumento do PIB, menos a meta de resultado primário – ancorada na sustentabilidade da dívida –, resultariam no nível máximo de gastos autorizado para o ano. Este seria o teto 2.0. Para ter claro, se a meta de primário for igual a R$ 50 bilhões e as receitas forem estimadas em R$ 2 trilhões, o teto de gastos teria de ser de R$ 1,950 trilhão.

Ganhos temporários de receitas não seriam contados no mecanismo acima. Dito de outra maneira, o teto de gastos seria função da meta de resultado primário, a ser calculada com base numa trajetória estimada de dívida e nos objetivos políticos fixados em lei e sinalizados ao mercado e à sociedade.

A vantagem deste novo modelo é a ancoragem das regras, hoje soltas no mar revolto das mudanças constitucionais a toque de caixa. A escolha pela contenção de gastos continuaria viva, como muitos, hoje, entendem necessário, mas condicionada também à capacidade de geração consistente de receitas.

“Food for thought”, como dizem os gringos. Vamos ao diálogo, pois a alternativa é continuar a remendar um sistema virtualmente positivo que, convenhamos, já nem existe mais. Ideias devem ser debatidas e nenhuma será perfeita sem o compromisso em torno da responsabilidade fiscal.

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DIRETOR-EXECUTIVO E RESPONSÁVEL PELA IMPLANTAÇÃO DA INSTITUIÇÃO FISCAL INDEPENDENTE (IFI). AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A INSTITUIÇÃO

Opinião por Felipe Salto

Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo

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