Cada vez que enfrentamos eventos extremos como os que atingem o Rio Grande do Sul, sempre nos perguntamos se a mudança não virá agora, se não vamos aprender as lições que as mudanças climáticas nos oferecem ou se não vamos romper os diques do negacionismo que impedem a ação transformadora.
Ninguém pode ter a pretensão de saber todas as respostas para o novo tempo. Mas é preciso começar humildemente por reconhecer que é loucura continuar fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentes.
Passado o momento da emergência e de salvar vidas, proteger as pessoas atingidas e restabelecer serviços essenciais como água e luz, será preciso discutir a reconstrução e, simultaneamente, através dela, inspirar as medidas preventivas em outros pontos do País.
É senso comum afirmar que precisaremos de recursos. Mas antes de pensar nos recursos seria necessário refletir sobre a maneira como os distribuímos.
O Congresso detém grande parte do Orçamento e a distribui em emendas parlamentares. O presidente da Câmara, Arthur Lira, argumenta que esse é o caminho correto pois só parlamentares em contato com suas bases conhecem as necessidades municipais.
Contesto essa tese porque pensar em termos exclusivamente municipais não dá conta da complexidade de muitos problemas, principalmente o de adaptação às mudanças climáticas.
O Lago Guaíba, por exemplo, é alimentado por quatro rios: Gravataí, Jacuí, Caí e Sinos, Não adianta pensar apenas em termos locais. Há alguns anos, criamos um instrumento de gestão para cuidar disso, o Comitê de Bacia. Ele é essencial não só para tratar do abastecimento da água e dirimir conflitos dele decorrentes, mas também para planejar uma defesa adequada às inundações.
Embora os Comitês de Bacia ainda estejam longe de cumprir seu potencial, em alguns lugares o planejamento esbarra sobretudo em planos de desenvolvimento municipal isolados da realidade da bacia hidrográfica.
De nada adianta construir um grande esquema de drenagem rio acima e despejar toda a água em vizinhos despreparados, para dar apenas um exemplo.
Sistemas de diques e drenagem não funcionaram bem em Porto Alegre. Algumas construções em outras cidades metropolitanas datam da década de 1960, quando ainda não se falava muito em aquecimento global.
Segundo o Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), o índice de chuvas na Região Sul do Brasil cresce há 60 anos e está sendo impulsionado pelo aquecimento global. Mas isso é difícil de demonstrar, principalmente em áreas tão desconfiadas sobre mudanças climáticas, como alguns setores do agro.
De fato, não se demonstram com facilidade nem o aquecimento nem seus efeitos. Porto Alegre teve uma grande inundação há 83 anos, em 1941. Não seria apenas a repetição daquele desastre?
Acontece que o Rio Grande do Sul foi atingido por grandes chuvas na primeira semana de setembro do ano passado. Tudo indica que estamos diante de outra situação, que alguns chamam de novo normal.
Tudo isso acontece num ano de eleições. As cidades trocarão prefeitos e vereadores. Todos terão de pensar num novo planejamento urbano, todos terão de colocar as preocupações ambientais no topo da agenda, uma vez que tornaram-se uma questão de sobrevivência.
É preciso ressaltar a grande força da inércia, a forte tendência de tudo ficar como está, sobretudo quando passam os momentos mais graves.
Dessa vez, há algo que ficará no horizonte por algum tempo. O processo de reconstrução do Rio Grande do Sul não se fará da noite para o dia. Não são apenas algumas estruturas que precisam ser revistas. Parece que até a localização de algumas cidades, como Roca Sales e Muçum, devem ser reavaliadas.
Caiu muita água. Não é possível esquecer rápido nem pura e simplesmente destinar dinheiro para reconstrução sem refletir sobre o novo tempo, sem otimizar com uma análise detalhada o uso desse dinheiro.
Todo o País tem uma chance agora de se adaptar às mudanças climáticas, de trabalhar a resiliência de suas cidades e de considerar também que o perigo não vem apenas do céu e que grande parte de suas regiões litorâneas serão atingidas pelo aumento do nível do mar.
Trabalhei num pequeno documentário intitulado O Avanço do Mar, percorrendo praias já destruídas, como a de Atafona, no Estado do Rio, e outras ameaçadas em Pernambuco e Santa Catarina.
Concluí que o título era inadequado. Ainda não se tratava propriamente do avanço do mar. Passei a chamá-lo de A Resposta do Mar, cujo território foi invadido pela especulação imobiliária.
Mas foi possível imaginar o que nos espera quando o mar avançar de fato e nos colher em nossa indiferença ao derretimento das geleiras, que começou há muito tempo.
Talvez o mundo da política institucional não se dê conta da rapidez necessária de tantas mudanças. Mas a sociedade sim terá um papel essencial, cobrando dos seus governantes e tomando algumas iniciativas que não dependem deles. Meninos e meninas que ainda estão na escola já começam a saber do que se trata, e certamente serão decisivos.
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JORNALISTA
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