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O jornalista Fernando Gabeira escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | A tardia hora da segurança

Ou o Brasil recupera seus territórios perdidos para o crime ou esta singularidade marcará o destino do País, interferindo, inclusive, nas suas ambições econômicas

Foto do author Fernando Gabeira

O presidente Lula mudou seu discurso e afirma que acabará com a “república dos ladrões de celular”. O ministro da Justiça anuncia, por seu turno, que apresentará ao Congresso a PEC da Segurança, assim que a cúpula parlamentar volte do Japão, para onde, no meu entender, não tinha razão para ir.

Se ainda há tempo ou já passou da hora é uma discussão inútil como a que se trava no combate ao aquecimento global. Não há escolha.

Uma PEC da Segurança que sintonize os esforços dos governos federal, estadual e municipal é bem-vinda, assim como a criação de um sistema nacional. Há muitas resistências em alguns Estados, que temem a presença federal. Mas, ainda que as resistências sejam vencidas, uma sintonia maior é apenas um passo.

Um grande problema espera os aliados numa política de segurança: a desocupação de territórios dominados pelo tráfico de drogas e milícias.

Desde os primeiros anos do século tenho participado de esforços para mapear o terreno perdido, uma grande área em que a população não tem direitos elementares. Ela é obrigada a seguir a lei dos ocupantes, consumir gás vendido por eles e viajar em transporte alternativo de propriedade dos bandidos. Os traficantes chegam ao ponto de proibir o uso de certas cores e, em muitos lugares, promovem um ataque brutal às mulheres que escolhem possuir.

Ao longo dos anos, tenho visto este processo crescer. Ele cresce no interior da própria cidade, ampliando seu domínio sobre as favelas. Mas, como é sustentado pelo tráfico de drogas, cresce também sobre cidades turísticas do Estado.

No Rio de Janeiro, o processo de ocupação de algumas áreas se estendeu a Angra dos Reis e Paraty. Com características próprias a cada Estado, o tráfico está presente no litoral de São Paulo.

Tive a oportunidade de documentar a violência urbana em várias cidades do Nordeste. Observei em Fortaleza um processo, embora embrionário, semelhante ao do Rio de Janeiro. Existem nas capitais núcleos das grandes organizações do Sudeste, como Comando Vermelho e PCC. Mas vão surgindo grupos nativos, como Defensores do Estado, no Ceará, e Família do Norte, no Amazonas. Quase toda capital tem seu grupo nativo, associado ou independente.

O processo brasileiro é tão famoso no mundo que o próprio presidente de El Salvador, Nayib Bukele, se referiu a ele, afirmando que não entendia como um Estado tão poderoso como o brasileiro não conseguia dominar seu território. Bukele é um defensor da força bruta.

Nem sempre ela é o melhor caminho para a liberação territorial. As incursões violentas nas favelas brasileiras pecam por uma incompreensão das leis de um confronto assimétrico. Assim como em tantos outros lugares, os traficantes usam a população como escudo e conseguem sua simpatia diante do bombardeio.

A destruição de uma quadrilha com muitos tentáculos já foi realizada com êxito. Existe um documentário sobre a máfia mostrando como isso foi possível em Nova York a partir de uma força-tarefa do FBI.

O caso brasileiro é mais complexo, não apenas porque existe dominação territorial. A simples aniquilação de uma quadrilha que domina uma área significa apenas que o terreno está limpo para que outra quadrilha ocupe seu lugar. Sem garantir a permanência do Estado com seus serviços básicos, a prisão de um grupo inteiro significa apenas enxugar gelo.

A interrogação sobre se não passou da hora de reagir tem algum sentido quando pensamos na contaminação das instituições. A polícia do Rio de Janeiro foi comprometida, assim como a própria política e uma fração do Judiciário. Nas eleições, cerca de 1 milhão de eleitores não podem ser contatados por candidatos vetados pelo tráfico e pela milícia.

A julgar pelas investigações sobre a execução de um delator do PCC no aeroporto de Guarulhos, a Polícia de São Paulo também foi atingida pela infiltração do crime organizado.

No Rio, o processo é tão complexo que Raul Jungmann, quando foi secretário de Segurança, usou uma imagem do escritor J. Conrad para descrever a situação: coração das trevas.

Esses são apenas alguns dos grandes problemas de segurança pública que precisam ser enfrentados. Naturalmente, a frequência do furto de celulares, os constantes assaltos nas grandes cidades, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo, são temas mais sentidos e pedem resposta imediata.

No entanto, a tentativa de soluções cosméticas pode trazer um ligeiro alívio eleitoral e ofuscar os grandes problemas de fundo que continuam crescendo. No Rio, os tiroteios migraram das favelas para as grandes vias que atravessam a cidade.

Ou o Brasil recupera seus territórios perdidos para o crime ou esta singularidade marcará o destino do País, interferindo, inclusive, nas suas ambições econômicas. Nada mais evidente do que a pressão que as milícias fizeram sobre uma indústria de equipamento solar, inviabilizando sua implantação no interior do Rio.

A PEC da Segurança a ser apresentada em abril é apenas um passo numa longa caminhada. Os grandes projetos operacionais ainda continuam em aberto, à espera de governos que realmente levam a sério o tema de segurança pública.

Opinião por Fernando Gabeira

Jornalista

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