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Fissuras no mundo de Trump

Por mais excêntricas que fossem suas políticas no novo mandato, não se chocavam diretamente contra as convicções republicanas e o bolso da classe média como faz a sua ofensiva tarifária

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Por Notas & Informações
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Donald Trump emergiu das urnas em novembro passado parecendo mais forte do que nunca, com a maioria na Câmara, no Senado e no voto popular. Aproximando-se da marca dos cem dias, Trump aproveitou uma oposição desnorteada para “se mover rápido e quebrar coisas”, como diz o mantra do Vale do Silício. Mas até o momento, por mais controversas e excêntricas que fossem suas políticas e por mais atabalhoada e agressiva que fosse a sua implementação, elas estavam de algum modo alinhadas à agenda dos republicanos. À parte os eleitores Maga, o que fez a balança pesar a seu favor nas urnas foi um grupo diverso unido pelo descontentamento com os preços altos. O seu pacote tarifário, contudo, atinge em cheio tanto as convicções de republicanos tradicionais quanto o bolso dos eleitores comuns.

Os sinais de que a lua de mel de Trump estava acabando mais rápido do que se esperava já estavam visíveis antes do “Dia da Libertação”, quando o presidente anunciou um espantoso tarifaço global. Em pouco mais de dois meses, segundo o Gallup, seus índices de aprovação caíram de 47% para 43%. A militância Maga podia vibrar com Elon Musk, o bilionário sem um cargo oficial, cortando gastos federais mesmo com pesquisas contra o câncer, mas, segundo uma pesquisa do Harvard Caps/Harris Poll, a opinião favorável sobre Musk caiu dez pontos entre fevereiro e março.

Grandes promessas, como a de acabar com a guerra da Ucrânia em 24 horas, não estão nem perto de se realizar. As tensões com a China, que parece se sentir cada vez mais à vontade para intimidar Taiwan, só aumentaram, e os eleitores se perguntam o que ganham com as provocações aos vizinhos Canadá e México e aos aliados europeus. Para os republicanos, em especial, foi uma especial humilhação o amadorismo da cúpula de segurança ao incluir por engano um jornalista num grupo de trocas de mensagens sensíveis para dar ciência de um ataque americano aos houthis.

Até o momento, no entanto, a resposta da Casa Branca a todos os questionamentos às atitudes exóticas de Trump era a mesma: que ele está fazendo exatamente o que os eleitores que votaram nele querem. Uma semana após o caos nos mercados precipitado pelo “tarifaço” de Trump, mesmo membros do Partido Republicano e aliados próximos de Trump estão começando a retrucar que não foi para isso que votaram.

Foram essas as exatas palavras do bilionário Bill Ackman, convertido de última hora ao trumpismo, em suas redes sociais, alertando que uma “guerra nuclear contra todos os países do mundo”, como ele chamou o tarifaço, iria paralisar investimentos, fechar as carteiras dos consumidores e arruinar a reputação dos EUA. Contrariando frontalmente Trump, Musk disse que o conselheiro econômico do presidente norte-americano e principal arquiteto de sua política tarifária, Peter Navarro, é um “cretino”.

A maioria dos americanos investe no mercado de ações e sentiu instantaneamente o impacto das tarifas sobre seu pecúlio. Mesmo antes do anúncio do pacote, só 38% dos americanos, segundo uma pesquisa da Associated Press, aprovavam o modo como Trump estava lidando com as negociações comerciais.

Reveses republicanos em recentes eleições locais indicam que a paciência dos eleitores está se esgotando. Para não testá-la, Trump desistiu de indicar a deputada Elise Stefanik como embaixadora da ONU, o que suscitaria eleições para substituí-la, pondo em risco a estreita maioria republicana na Câmara. No Senado, sete representantes republicanos já se comprometeram com um projeto de lei que restringe a latitude do presidente para impor tarifas, restaurando prerrogativas do Congresso, conforme o espírito da Constituição. Em um ano e meio os americanos irão às urnas para as eleições de meio de mandato e a probabilidade desde já é de que os democratas retomem o controle ao menos da Câmara.

Ninguém pode subestimar a capacidade de Trump de desafiar a lei da gravidade política. Mas a mistura de vandalização da ordem constitucional e depauperação da classe média é explosiva. Não é impossível que, muito antes do que se imagina, a lua de mel com o eleitorado conservador se transforme num divórcio irreversível.

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