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Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília, Flávio Tavares escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|A memória conspurcada

O País sem memória não está apenas no passado, mas também no presente. E, talvez contraditoriamente, está presente para jamais ser esquecido

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O Brasil é um país sem memória. E o trágico é que os equívocos do passado podem nos levar a não errar no presente e, igualmente, a nos fazer acertar no futuro.

Aqui, tudo (ou quase tudo) nos leva a esquecer. Indago: quem se recorda da renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República em 1961, aos sete meses de governo, mesmo tendo sido eleito por avassaladora maioria? Ou quem se recorda do veto dos três ministros militares à posse do vice-presidente João Goulart ou da Campanha da Legalidade, iniciada no Sul pelo então governador gaúcho Leonel Brizola e que logo se estendeu a todo o País?

Ou quem se lembra do golpe militar de 1.º de abril de 1964, que durou 21 anos, nos quais os governantes eram “eleitos” pelos donos do poder, desde o ditador de turno até os governadores e prefeitos das capitais estaduais? O voto popular foi suprimido ou incinerado, os partidos políticos foram abolidos. Instituiu-se a censura à imprensa e demais meios de comunicação. A tortura aos presos políticos transformou-se em método de interrogatório.

Poderá dizer-se que “tudo aconteceu em outro século” e que, por isso, pertence a “um passado remoto”, fácil de esquecer. Resquícios do golpe (que há pouco completou 60 anos) só foram abolidos, no entanto, com a campanha das “diretas já”. Mesmo assim deixaram marcas que perduram até hoje, tais quais a atual enxurrada de mais de 30 partidos que nada (ou quase nada) representam e que mais parecem meros aglomerados de gente em busca de poder pessoal.

Nos tempos do governo Bolsonaro, um de seus filhos-parlamentar chegou a sugerir a reimplantação do Ato Institucional n.º 5, que, nos tempos da ditadura, suprimiu o habeas corpus e outros direitos constitucionais, levando ainda à cassação de direitos políticos de centenas de brasileiros e à destituição de integrantes do Supremo Tribunal Federal. As restrições à livre imprensa tornaram-se ainda mais férreas e absurdas quando censores ocuparam as redações dos jornais (inclusive do Estadão), ditando aquilo que poderia ser ou não ser publicado.

Mais ainda: os jornais foram proibidos de publicar “espaços em branco” que mostrassem o que havia sido cortado pelo censor. Para deixar clara a insânia dos cortes da censura, este jornal publicava trechos do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões, num desafio à ferocidade da censura, para que os leitores entendessem que naqueles espaços deviam estar as notícias censuradas.

Os censores chegaram ao absurdo de proibir que se publicassem informações sobre uma epidemia que assolou São Paulo naquela época… A falsa justificativa inventada pela censura era de que a divulgação da epidemia poderia “criar pânico” na população.

Essa e outras perigosas tolices inventadas pela censura generalizada faziam parte, porém, da forma de governar o País nos tempos da ditadura… Seria isso aquilo que o filho-parlamentar do ex-presidente Jair Bolsonaro acreditava ser útil à democracia? Ou teria a memória conspurcada ou que só cultivava o horror, tal qual erva daninha?

Esse país sem memória, porém, não está apenas no passado, mas também no presente. E, talvez contraditoriamente, está presente para jamais ser esquecido.

Três fatos recentes levam a pensar assim. Primeiro, uma ação que tramita no Supremo Tribunal Federal e que leva ao pagamento de quase R$ 1 bilhão a juízes, procuradores e promotores federais. O “penduricalho” irá render a cada beneficiado cerca de R$ 2 milhões.

O absurdo, porém, é que o caso tramita há anos no Supremo Tribunal Federal sob a justificativa (ou pretexto) de que os juízes, procuradores e promotores federais têm “acúmulo de trabalho” ou trabalham em mais de uma comarca. Até aqui, pela regra em vigor, nenhum funcionário federal poderia receber mais do que um ministro do Supremo.

O ponto de partida para a criação dos “penduricalhos” de agora foi uma lei do Congresso Nacional, sancionada em 2015 pela então presidente Dilma Rousseff, que beneficiava juízes com “excesso de trabalho”. Posteriormente, a lei foi estendida aos juízes estaduais.

A soma de absurdos estendeu-se agora ao Projeto de Lei n.º 1.904 de 2024, em tramitação na Câmara dos Deputados, que equipara o aborto ao crime de homicídio. No entanto, em termos de Direito, o mais negativo é que, de fato, pune-se a vítima e se isenta o “criminoso”. Talvez mais grave ainda é que, de um modo geral, não se impõe ao homem nenhuma responsabilidade pela gravidez, recaindo tudo somente na mulher.

O terceiro ponto a não esquecer se origina na decisão do Supremo Tribunal Federal de liberar o uso da maconha para “uso pessoal”. Até 40 gramas, qualquer pessoa, jovem, adulta ou idosa, pode portar e consumir a perigosa cannabis, que, por sua vez, abre portas ao consumo de drogas ainda mais perversas.

A Suprema Corte esqueceu-se de que a relação entre consumidores e narcotraficantes é biunívoca. Um não existe sem o outro. O narcotraficante existe porque há quem consuma. E vice-versa.

Outra vez, vale dizer que somos um país sem memória.

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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNB

Opinião por Flávio Tavares

Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília, Flávio Tavares escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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