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Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília, Flávio Tavares escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|A tragédia gaúcha ao olho vivo

As águas não são más nem assassinas. Têm força, porém. Se forem contínuas, exigem cuidados dos governantes, algo que faltou no Sul

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Escrevo de Porto Alegre, onde a vida se confunde com a hecatombe. Mais de dois terços do Rio Grande do Sul estiveram literalmente submersos por mais de 30 dias. Agora, em muitas localidades, nas cidades e nos campos, as águas baixaram, mas a enchente continua, mesmo em menor intensidade e extensão. Invadidos pelas águas, até hospitais estão sem funcionar. O aeroporto da capital gaúcha está totalmente alagado, da pista de pouso à estação de passageiros. E mais ainda: a inundação também soterrou, no sentido literal do verbo. Morros despencaram, soterrando o que encontravam pela frente – pessoas, residências, fábricas, árvores, plantações, animais, móveis e automóveis.

Dos objetos pessoais, como carteiras de identidade, fotografias familiares, títulos eleitorais e outros documentos, tudo desapareceu. Nos prédios que sobraram, a água invasora rachou as paredes.

O panorama é de guerra, mesmo sem bombardeios e canhões, como se a destruição da Ucrânia ou da Faixa de Gaza tivesse se instalado no sul do Brasil. Ou como se o terrorismo do Hamas tivesse mudado de fisionomia e adotado a forma de chuva.

Tudo é indescritível. Faltam adjetivos em nossa língua, ou em qualquer outro idioma, para descrever a situação e tudo o que se vê ao redor. A cidade de Eldorado, na área metropolitana, foi totalmente alagada e em todo o Rio Grande do Sul há mais de 150 mortos. O irônico em tudo é que “El Dorado” foi a denominação que, no século 16, os conquistadores europeus deram aos locais de minas de ouro nos territórios das Américas...

Ironia maior, porém, é que a 5 de junho (48 horas atrás) celebrou-se o Dia Mundial do Meio Ambiente...

Todo esse horror, porém, foi compensado, em parte, pela solidariedade de diferentes setores da sociedade brasileira. Homens e mulheres se transformaram em trabalhadores voluntários, auxiliando os danificados. Boa parte deles era de outros Estados e pela primeira vez conhecia o sul do Brasil. Essa solidariedade espontânea chegou às escolas de São Paulo (e de outras cidades) e foi compartilhada por adolescentes ou até crianças, que recolheram garrafas de água potável para serem enviadas aos atingidos pelas enchentes.

A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) levou ao Rio Grande do Sul bombas de sucção e outros materiais similares, lá inexistentes. Bombeiros de distantes Estados, como Acre e Maranhão, lá estavam (ou continuam a estar) numa demonstração em tempo real de que somos uma só nação, unida até na desgraça.

A tragédia do sul do Brasil demonstrou que as mudanças climáticas não são uma simples tese de ambientalistas, mas, sim, uma realidade que se agrava pelo nosso desdém ao tratar a natureza como um estorvo. Continuamos (ou até incentivamos) a derrubar matas nativas, e até as reflorestadas, que atuam como reguladoras das chuvas e, por consequência, dos aguaceiros e enchentes. Tudo isso alternando-se com estiagens longas que afetam a agricultura.

Agora, uma das dramáticas consequências das enchentes no Rio Grande do Sul é a possibilidade de faltar arroz. O governo federal liberou a importação do cereal prevendo que falte em nossas refeições. Poderá também faltar ou escassear soja. Os estragos deixados pelas enchentes não afetaram apenas o setor agrícola e chegam também à indústria automobilística. O Sul é fabricante de peças essenciais à produção de automóveis e de caminhões.

À beira das poucas estradas não alagadas, improvisadas barracas de lona ou plástico servem de moradia a milhares de desalojados. Em várias cidades (especialmente na capital estadual) milhares de adultos e crianças estão recolhidos em improvisados abrigos. Lá, dormem e comem os alimentos preparados por voluntários.

As águas não são más nem assassinas. Têm força, porém. Se forem contínuas, exigem cuidados dos governantes, algo que evidentemente faltou agora no Sul. A prefeitura da capital gaúcha não conservou as comportas que separam a cidade das águas do Lago Guaíba. A chuvarada rompeu tudo, alagando totalmente a zona central. Nem sequer havia bombas de sucção.

Por outro lado, o governo do Estado alterou o pioneiro Código Estadual do Meio Ambiente, que serviu de modelo a outros Estados, e, assim, facilitou a hecatombe de agora. A alteração facilitava a construção de uma mina de carvão a céu aberto, à beira do caudaloso Rio Jacuí, que desemboca no imenso Lago Guaíba, que banha a capital gaúcha. A mobilização da opinião pública evitou a abertura da mina, que, se fosse construída, teria, com as enchentes de agora, transformado o Lago Guaíba numa pestilenta cloaca.

Existe, porém, o lado oculto e pernicioso que se autointitula reconstrução, mas que em realidade se dedica ao roubo ou à fraude. Nos alojamentos provisórios houve larápios e foi necessária a intervenção policial para evitar a continuidade do roubo. Em municípios do interior, funcionários das prefeituras superfaturaram em até 200% a compra de alimentos ou roupas para os desalojados pela enchente.

A tragédia só se explica, porém, pela crise climática.

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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Opinião por Flávio Tavares

Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília, Flávio Tavares escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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