Completei 90 anos em meados de 2024. Na maior parte desse tempo convivi direta ou indiretamente com a violência. Tive ímpetos violentos também, e a tal ponto que me leva a indagar: o próprio viver será violento?
Talvez a ideia se origine porque me alfabetizei através dos jornais que descreviam os sangrentos combates da 2.ª Guerra Mundial e os horrores do nazismo. Até hoje, recordo os filmes documentários em que as vitoriosas tropas aliadas levavam os habitantes das cidades alemãs para conhecer os campos de concentração nos quais milhares (ou milhões) de pessoas, principalmente judias, foram torturadas e mortas pelos nazistas.
Em agosto de 1945, festejamos o lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki, matando a população civil e levando o Japão a render-se. Desconhecíamos o horror da expansão nuclear e aplaudíamos o fim da 2.ª Guerra Mundial.
Todas as dores originadas da violência perdem a magnitude, porém, quando comparadas aos registros da Bíblia relatando que Caim matou seu irmão Abel. O assassinato é crime sem paralelo, mas se agiganta quando a vítima é o próprio irmão. Tudo aí passa a ter uma sordidez absoluta que conduz necessariamente a outra indagação: seria esse o futuro da humanidade, em que a inveja é dominante e conduz ao assassinato, à fraude e ao roubo?
Talvez a pergunta seja exagerada e não tenha sentido, pois os que matam, fraudam e roubam são uma minoria que a sociedade repele, a polícia vigia ou combate e o Judiciário pune.
Em alguns casos, porém, a violência é tão brutal que foge a toda interpretação (até as mais ilógicas e absurdas) como sucedeu com Gisèle Pelicot, estuprada na França por mais de 50 homens levados pelo próprio marido numa requintada perversão absoluta. O marido a sedava antes de entregá-la à sanha dos estupradores, revelando-se um psicopata que supera todos os violadores e masoquistas da História.
Ou como ocorreu aqui em 2008, quando Alexandre Nardoni assassinou a filha Isabella, e hoje cumpre pena de 30 anos de prisão em regime aberto.
Amanhã, 4 de janeiro, este jornal completa 150 anos, e por suas páginas passaram os mais variados tipos de violência e, por outro, também atos de amor. Aí esteve a descrição de um tempo impossível de medir ou quantificar em dias ou horas. O Brasil e o mundo já não são os mesmos de 1875, o estilo de vida sofisticou-se e outras são as necessidades.
Também a violência é outra: agigantou-se a tal ponto que, se nos assaltam de arma em punho para roubar, chegamos até a agradecer aos criminosos por nos deixarem com vida.
No Brasil, não há pena de morte. Como já lembrei aqui, nenhum juiz pode condenar à morte o autor do crime mais brutal, mesmo com provas concretas. No entanto, a polícia mata diretamente ou pelas “balas perdidas” que atingem até crianças. Lembro um caso recente: em Osasco, na madrugada do Natal, um jovem de 24 anos foi baleado à queima-roupa por um policial ao filmar uma ação da Polícia Militar.
Nos anos 1960, morando em Brasília, vivi a angustiosa tristeza do golpe militar de 1.º de abril de 1964 e dele fui vítima. Conheci a tortura, que a ditadura transformou em método de interrogatório.
No entanto, exista outra violência que é cega e que é exercida pelas torcidas no desporto, especialmente no futebol. As competições desportivas exigem adversários, pois, sem a parte contrária, não existiria jogo e tudo seria amorfo e sem vencedor. Podem compreender-se até as jogadas violentas ou bruscas, nas quais se apoiam ambas as equipes, para derrotar o seu contrário. Aí busca-se a vitória que é a finalidade de toda competição. Mas sem a parte contrária – insisto – não existiria confronto desportivo.
As torcidas, porém, brigam além do arrebatamento típico de toda disputa. Algumas vezes chegam a matar-se num corpo a corpo que toma conta dos estádios e que nem a polícia consegue impedir. Ou, então, são apedrejados os ônibus que conduzem os torcedores da parte contrária. Em certas ocasiões, existem até casos de morte.
É, então, o momento de recordar a visão do escritor francês Albert Camus ao dizer que “o conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol”.
Por sua vez, Hannah Arendt escreveu que há ocasiões em que até o pensar representa um perigo que nasce do desejo de encontrar resultados que tornem desnecessária toda visão crítica.
Indago: não será isso o que mostra o inquérito da Polícia Federal que, entre outros, apontou o general Braga Netto como um dos mentores da conspiração que levaria ao assassinato do presidente e do vice-presidente da República, além de um ministro do Supremo Tribunal Federal? Não se trata de um marginal, mas de general “quatro estrelas”, que foi ministro da Defesa no governo Bolsonaro e seu companheiro de chapa (como vice-presidente) na frustrada tentativa de reeleição.
O assassinato não se consumou, mas prepará-lo já define o perverso limite da violência sem limites.
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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
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