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Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília, Flávio Tavares escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião | Ignoramos a ciência festejando a ignorância

Na crise climática, estamos à beira do caos, mas não nos preocupamos com adotar medidas drásticas

Foto do author Flávio Tavares

Tudo é visível, mas simulamos que nada vemos. A tragédia assumiu a forma de chuvas e temporais como assassino sorrateiro. A natureza grita pedindo socorro, mas nada ouvimos. A inação nos domina como uma pandemia que mata em silêncio e nos imobiliza.

Tudo ocorre à nossa frente, como dias atrás em Sorocaba, no interior paulista, num verdadeiro cataclismo que destrói e mata. Em 2023, o litoral de São Paulo já fora atingido por algo similar, que destruiu residências e fez vítimas, mas o desastre não foi suficiente para nos despertar.

As mudanças climáticas transformaram-se em crise que se agrava a cada dia. Basta o horror das chuvas em Sorocaba mostradas na televisão e noticiadas em detalhes neste jornal, mas a sociedade e o poder público não se interessam pelo problema. Não caio no infantilismo ridículo de pretender que se resolva tudo num “decreto” que “proíba” chuvas intensas, tempestades e suas consequências.

Temos, porém, de ir às causas da crise climática, antes que se torne irreversível.

É ato de solidariedade prestar assistência aos afetados, como agora, tanto em Sorocaba como no Sul do País, onde a tempestade devastou ainda mais. Mas é absurdo preocupar-se com as consequências e deixar de lado as causas. É como tratar a febre dando ao enfermo cada vez mais água, sem buscar a origem do processo febril.

Anos atrás, chovia todos os dias no Amazonas, no Pará, no Acre e em outras regiões da Amazônia. Agora, essas áreas sofrem uma estiagem aguda que secou rios e impediu a navegação. É como se a chuva se deslocasse para o Sudeste e o Sul em forma de tempestade, por não conhecer a região...

Estamos à beira do caos, mas não nos preocupamos com adotar medidas drásticas.

Governantes e grandes empresas (como as multinacionais) seguem cegos e surdos aos compromissos assumidos em 2015 no Acordo de Paris para conter a expansão do aquecimento global. O pacto previa restringir o uso dos combustíveis fósseis para (até o fim do século) diminuir o aquecimento global em 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais. Mas desde a Cúpula do Clima de 2021 foi removida apenas 0,5 gigatonelada de dióxido de carbono lançado na atmosfera, menos de 1% daquilo com que haviam se comprometido até 2030, data limite para evitar a catástrofe.

Será possível remover em seis anos aquilo que polui a atmosfera há mais de um século?

Já se tornaram cansativas as alusões aos Acordos de Paris no mundo inteiro. No Brasil, porém, não se fala nisso. O tratamento do meio ambiente foi desastroso durante o governo anterior, presidido por Bolsonaro. Ainda não se dissipou a infeliz ideia do então ministro do Meio Ambiente de que se deveria aproveitar a pandemia da covid-19 (que concentrava a atenção dos meios de comunicação) para “passar a boiada”. Mais tarde, o ex-ministro candidatou-se a deputado federal e foi um dos quatro mais votados no Estado de São Paulo.

Hoje, outros são os governantes, mas a boiada continua a passar...

A ciência aponta o uso dos combustíveis fósseis como causa principal do aquecimento global. Os automotores espalham dióxido de carbono pelos quatro cantos e a solução seria usar carros elétricos. Mas o atual governo aumentou a alíquota de importação de veículos elétricos, como se isso (por si só) estimulasse a produção nacional. Mais grave ainda foi a decisão de continuar a implantação da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, mostrando que o petróleo segue sendo prioritário. Não bastou que a construção da refinaria tenha sido um dos alvos da Operação Lava Jato, que mostrou o corrupto conluio entre políticos e grandes empresas.

O Brasil, porém, continua a apostar no petróleo, contrariando a ciência. A Petrobras quer extrair em plena foz do Rio Amazonas, o que só não se consumou (ainda) pela oposição da ministra do Meio Ambiente. Na polêmica, o presidente Lula da Silva nada disse e, há pouco, a Petrobras anunciou que perfurará a chamada Margem Equatorial, na altura do Rio Grande do Norte.

A crise climática é tema fundamental do século 21, com consequências na saúde da população. O atual surto da dengue se expandiu por causa das chuvas e temporais em diferentes pontos do País. A água acumulada fez proliferar o Aedes aegypti, vetor da doença.

As longas estiagens seguidas de chuvas e tempestades interferem na agricultura, lançando sobre o mundo a ameaça da fome.

Além da ciência, há outros alertas. A encíclica Laudato Si’, do papa Francisco, lembrou que “nossa casa” está sob ameaça e incorporou ao cotidiano a ideia de que não há “planeta dois”. O secretário-geral da ONU, António Guterres, fez uma advertência dramática: “Estamos construindo uma catástrofe global”.

Mas há, também, positivas iniciativas, como as experiências da Universidade de São Paulo em desenvolver formas de abastecimento de automotores por hidrogênio renovável não poluente, em substituição ao diesel em ônibus e caminhões. O governo federal, porém, só ficou sabendo disso pela notícia deste jornal.

Em suma, ignoramos a ciência cultivando a ignorância.

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JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Opinião por Flávio Tavares

Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília, Flávio Tavares escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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