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Golpismo em estado latente

Obtidos pela PF, os estarrecedores detalhes de suposta trama da chefia da Polícia Rodoviária Federal para prejudicar Lula na eleição seguem perfeitamente o padrão bolsonarista

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Por Notas & Informações
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“Constituição Cidadã”. Não havia nome mais apropriado para a operação da Polícia Federal (PF) que, no dia 9 passado, prendeu preventivamente o ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal (PRF) Silvinei Vasques. Diante de tudo o que veio à tona até aqui a partir das investigações, não resta dúvida de que a maior vítima da gravíssima trama golpista da qual o sr. Vasques é suspeito de fazer parte seria a ordem democrática inaugurada pela Constituição de 1988 – um pacto amparado, entre outros pilares, por eleições livres, justas e periódicas.

Ainda há muito a ser investigado e comprovado, mas alguns dos detalhes trazidos pelo trabalho da PF são de abismar. Ali está, com impressionante riqueza de detalhes, uma suposta maquinação dentro da PRF para comprometer a lisura da eleição passada, favorecendo Bolsonaro. A fim de dificultar a votação no adversário do ex-presidente no segundo turno, Lula da Silva, nos locais em que o petista obteve 75% ou mais dos votos no primeiro turno, a PRF realizou uma série de blitze que retardaram o acesso dos eleitores às seções eleitorais. Conforme afirmou um agente da PRF em depoimento à PF, a isso o sr. Vasques chamou de “policiamento direcionado”.

Ao que parece, em conluio com servidores públicos subordinados ao então ministro da Justiça, Anderson Torres, agentes da PRF produziram um relatório de “inteligência” mapeando os municípios em que Lula foi mais bem votado na Região Nordeste e, a partir dessa informação, deflagraram bloqueios para dificultar o deslocamento de eleitores. Se comprovado, não há condição de um crime desses passar sem rigorosa punição.

Tudo isso pode estarrecer, mas não surpreende. O golpismo de Jair Bolsonaro e de seus leais fâmulos é um dado da realidade muito tempo antes do mau militar convertido em mau político ter assumido a Presidência da República. Ao longo dos penosos quatro anos de seu mandato, Bolsonaro tudo fez para desqualificar as instituições republicanas e o processo eleitoral democrático, de modo a criar um ambiente em que a ruptura fosse quase uma consequência natural. A ruptura não veio, hoje se sabe, porque o Exército se manteve fiel a sua missão constitucional, mas vontade de tumultuar não faltou, seja durante o governo, seja ao longo da campanha eleitoral, seja depois que Bolsonaro foi derrotado nas urnas.

O sr. Vasques é, em tais circunstâncias, um poderoso símbolo desse estado de ânimo bolsonarista. Ele foi um dos tantos pigmeus morais que Bolsonaro instalou em postos importantes da administração federal para atender a seus desígnios antidemocráticos. E o sr. Vasques assim o fez, transformando a Polícia Rodoviária Federal em guarda pretoriana de Bolsonaro.

Eis a dimensão da audácia dessa turma. Por apego ao poder e volição de bagunçar o País, não se inibiram diante da ordem jurídica nem de uma ideia de decência para tentar cassar o direito ao voto, a mais sagrada das liberdades democráticas, de milhares de brasileiros.

É disso que cuida a Operação Constituição Cidadã. Não se trata, pois, de uma investigação policial qualquer. Pela gravidade dos danos a que a sociedade foi exposta e pelo desassombro dos investigados para levar até as últimas consequências seu desiderato golpista, é imperioso que a PF apure com rigor toda a cadeia dessa trama sórdida e, principalmente, todos os envolvidos, sem exceção.

Por mais cínicos que sejam, não é crível que Silvinei Vasques e outros bolsonaristas encalacrados na Justiça, como Anderson Torres e Mauro Cesar Cid, tenham feito o que se suspeita que fizeram de moto próprio. É preciso investigar até que ponto houve a participação do sr. Jair Messias Bolsonaro, direta ou indireta, nessa tentativa de subversão da ordem democrática. Afinal, seria ele o maior beneficiário de um golpe bem-sucedido.

Quando se trata de ataques contra o Estado Democrático de Direito, o fracasso não serve de atenuante para ninguém.